Uma quase saída de mestre

Às duas horas da madrugada, ainda era possível observar movimento no barzinho Alameda das Peripécias. De forma irregular, as pessoas distribuíam-se, alegremente intermediadas pelo álcool, pelas mesas do local. Próximo às mesas centrais, à frente, havia o palco, onde estava sendo tocada a antepenúltima ou penúltima música de uma banda de qualidade mais pra lá que pra cá. Quanto a isso, no entanto, alguém pouco poderia se queixar, ao passo que a sinergia musical contagiava, com sucesso, o público significativo; significativo, afinal as reduzidas dimensões do espaço tornavam o lugar mais povoado que casa noturna chinesa.

Encantoados no lado direito do Alameda, que ficava ao mesmo tempo perto do palco, perto do banheiro feminino, encontravam-se eles: os fraternos amigos Rômulo e Remo. Atribuíam a si próprios, desonestamente, o título de fundadores da civilização romana contemporânea, no que tange ao espírito dionísico, particularmente; todavia não estavam na Itália, mesmo que o italiano, ou o poliglotismo em geral, estivesse afiado àquela altura. Ponto para a educação linguística concedida pelos vários copos de Chopp.

Rômulo e Remo

Melindrosos, Rômulo e Remo estabeleciam tocaia naquela posição estratégica. Há de se dizer, contudo, que a estratagema dos dois irmãos estava furada. A banda começara a tocar, ao que tudo indicava, a última música. Como efeito colateral, as mulheres dispersaram-se. Desgraçada diáspora feminina. Diante do toque de recolher, não houve outra opção aos dois irmãos senão assistir à solene despedida do sexo oposto. Como elas estavam maravilhosas naquele fim de noite! Com o salto alto amarrado ao antebraço, pé sujo no piso — mania essa que sempre intrigara os dois irmãos –, elas, as damas, iam, uma a uma, despedindo-se do recinto. As luzes foram acendidas. A guitarra tocou um acorde final. A rádio da madrugada ecoou, em volume mais baixo, pelos alto falantes das caixas de som, os trechos iniciais de Boate Azul. Os irmãos se entreolharam. Surgiu certa decepção. Alcançaram comum acordo, era hora de deixar a taverna romana.

Antes de entrar na fila de pagamento, por precaução, Rômulo procurou conferir seus bolsos. Mão direita no bolso direito. Mão esquerda no bolso esquerdo. Nada.

— Mas que diabos, Remo! – exclamou Rômulo. E continuou. – Você por acaso viu se eu deixei minha carteira no carro?

— Quê?! – Remo retrucou, ressabiado. – Não vá dizer que você não tá com ela!

— Não sei bem. Tô um pouco bêbado. – justificou-se ao irmão. – Da uma olhada no seu bolso aí, não tem nada?

— No meu bolso? Tá maluco, Rômulo?! Por que eu pegaria sua carteira? – conforme o dialogo progredia, a situação parecia escurecer para os dois irmãos. – Aliás, lembra que tínhamos combinado de você pagar minha conta hoje? Perdi meu cartão do banco semana passada. Você sabe muito bem disso.

— Droga! Mas você também sempre perde tudo, moleque! – alegou Rômulo, em tom de inquisição.

— Ah, agora a culpa é minha? – disse Remo. Em seguida, procurou clarificar o embaraço. – Tá, a gente ficar aqui discutindo não vai resolver nada. Vamos pensar. – e continuou. – Será que bebemos muito? Quantos chopps foram?

— Olha, acho que não foi muito. Aqui geralmente fecha cedo, a gente chegou tarde, aquela coisa toda. – Rômulo procurava tranquilizar sua parte fraterna. – Pega a comanda aí. Isso você não perdeu, não é? – incluiu sarcasmo, talvez numa tentativa de transferir a culpa para o irmão.

— Tá aqui. – Remo puxou um papel do bolso, no que, pasmo, arregalou os olhos. E anunciou a consequência da contabilidade. – A comanda eu não perdi, Rômulo, mas na conta dos chopps, nisso você se perdeu.

— Deu muito? – perguntou Rômulo.

— Fodeu. – disse Remo, concluindo depois com elegância. – Aqui tem Chopp pra cacete!

O impasse em que se inseriram os dois irmãos crescia conforme o lugar se esvaziava. A fila de pagamento, que possuía metros, encurtava-se centímetro a centímetro. Por certo essa não era a primeira vez que Rômulo e Remo metiam-se em confusão. Astutos como lobos, tal qual era sua mãe de criação, puseram-se intrépidos num plano de evasão. Necessitavam sair do Alameda de alguma forma. Como? Não sabiam. Passaram a fitar o local. Janelas, portas, entradas de funcionários. Tudo era item fruto de planejamento. De repente, surgiu um estalo na mente de Remo, o perdedor de coisas, que avisou de pronto Rômulo, o esquecedor de coisas.

— Rômulo. Veja ali ao lado, mas disfarça.

— O que tem? – balbuciou Rômulo.

— A entrada de funcionários parece permitir algum tipo de passagem. – Remo articulou. – Vamos investigar. Vem.

— Tá. – concordou Rômulo, acenando com a cabeça em conformidade.

Ladinos, os dois aproximaram-se, no sapatinho, da porta de entrada cuja inscrição dizia: “Entrada restrita aos funcionários. Não entre!”. Aguardaram um pouco. Rômulo voltou seus olhos para frente. Remo voltou os seus para trás. Revezaram na sentinela. Esperaram novamente. Mais um segundo. Outro segundo. Cutucaram-se: era hora de entrar.

Assim que adentraram a ala reservada aos funcionários do Alameda, Remo logo dirigiu-se às outras portas e repartições. Rômulo fez o mesmo. Empenhados na mesma função, a dupla sagaz impunha rapidez nas verificações. Nada passava incólume. Todas as fechaduras eram verificadas. Num infortúnio, nenhuma estava aberta. Olharam para uma única janela, posicionada ao longe, no final do corredor. Ressabiaram-se, porém o efeito do álcool removeu o receio. Optariam pela janela, não fosse a surpresa de uma figura humana logo atrás dos dois.

A largura do homem correspondia à altura dos irmãos. De queixo quadrado, braços volumosos, trajando terno e gravata, o sujeito assemelhava-se, em arquétipo, a um soldado do exército de Marco Aurélio. Coitados dos meninos lobo. Alcateia de dois não é coletivo. Rômulo e Remo miraram sua atenção para cima, no cume do monte Everest, onde se encontrava o rosto do convidativo brutamontes. Foram interrogados.

— O que vocês fazem aqui? Essa área é reservada para funcionários. – advertiu o segurança.

Vestindo uma cara de pau pertencente apenas aos que experimentam a noite, Rômulo puxou um coelho da cartola e surpreendeu o segurança imponente, numa consonância com seu irmão Remo que somente os bivitelinos podem manisfestar. Envolveu seu braço direito no pescoço de Remo, e falou.

— Ai, desculpa, seu segurança, mas é que o tesão tava demais. Esse é meu namorado, não tá vendo?! – Remo não acreditava, sentia vontade de rir ou chorar. Ao escutar essas palavras, completamente desconcertado, o Golias de terno avisou, de novo.

— É…vocês não podem fazer isso aqui. – e acrescentou. – Vou acompanhá-los até a porta. Os senhores já pagaram a conta?

— Sim! – responderam uníssonos. Essa fora a deixa necessária aos dois irmãos.

— E, da próxima vez, – quis finalizar o segurança. – vê se procurem um lugar mais adequado pra fazer seja lá o que os senhores estavam fazendo.

Os irmãos sorriram. Concordaram. E, alegres como nunca, saíram do Alameda das Peripécias.

Autor: Lucas Vinícius da Rosa