Sessão extraordinária no Tribunal de Osíris

Séculos escondem-se atrás de meus ombros, que pesam por isso. São épocas que, outrora, exibiram seres humanos moralmente criminosos.

Por certo que os valores morais se modificaram com o escorregar dos grãos pela ampulheta do tempo; exceto que determinadas falências da índole permaneceram incólumes: resistiram ao processo de envelhecimento do espírito humano, sustentando-se como antiquadas, e atuais, mazelas do caráter civilizado.

Desejei, desse modo, dadas as tempestades que são nossas relações, realizar um julgamento. E, neste ponto, inicia-se uma confusa solenidade cujo objetivo é mais esclarecimento que justiça. Ainda que a justiça busque esclarecer, porém os esclarecimentos nem sempre sejam justos.

Serei eu próprio, Matheus dos Anjos, o réu. Juntei coragem enquanto escrevia os três últimos parágrafos, e sinto-me destemido o suficiente para por-me a prova. Entretanto, antecipando-me a uma eventual hipocrisia, digo que posso ora ou outra recorrer ao perjúrio. Espero que o faça bem, e que isso não comprometa minha alma, item que será avaliado em meu nome.

O método de julgamento escolhido foi o Tribunal de Osíris. Em muito me agrada a ideia de julgar o que já está falecido. Vou além. Se a mitologia egípcia não me auxiliar no procedimento de redenção, estarei eu já morto, posição deverás confortável para um réu transgressor.

O Tribunal de Osíris compõe-se de 42 deuses, que avaliam 42 pecados de uma alma penada arbitrária. Osíris, mais múmia que deus depois de tanto tempo condenando defuntos, administra a cerimônia cuja receita está no Livro dos Mortos. Anúbis, por sua vez, realiza a importante pesagem do coração em comparação a uma pena.

Neste plenário das catacumbas, não acrescento nem diminuo mais nenhum personagem. Ou minto. Encontro boa justificativa em eleger Brás Cubas conselheiro jurídico de Osíris. O deus está cansado, requerendo um estagiário, e Brás tem indiscutível experiência com o mundo dos mortos e as suas peculiaridades.

No entanto, espectadores ávidos deste cerimonial, julgar a si próprio exigirá uma mudança na narrativa. Desfaço-me do discurso em primeira, e recorro ao de terceira, para não parecer que advogo as palavras sempre ao meu favor.

* * *

Há quatrocentos metros de distância da pirâmide de Quéfren, a segunda maior do Antigo Egito, ergueram uma estrutura em forma de câmara mortuária. Fechada em todos os lados, senão pela abertura da porta, o ar lá dentro relutava em se renovar.

Tangente às paredes, uma fileira de altas tochas se estendia pelos lados da sala quadrada. O fogo irradiava-se por todo o ambiente, tornando a atmosfera predominantemente laranjada. A porta ficava entreaberta. Jamais fechava. Talvez em razão do alto índice de mortes e julgamentos observado nos últimos séculos, convidando sempre alguém a entrar.

Postavam-se em pé. À exceção de Osíris, que descansava seus ossos em uma monumental cadeira banhada a ouro, posicionada no fundo da sala. No restante do espaço, distribuíam-se os 42 deuses, Brás Cubas – bem ao lado do deus dos Mortos –, Anúbis – o gerenciador de balança –, Amit – monstro do Nilo e devorador de corações pecaminosos – e Matheus dos Anjos, o réu cuja alma acumulou o pecado dos homens.

O grande número de entidades presentes na sala trouxe um burburinho crescente. Falavam sobre as cheias do rio Nilo; sobre o déficit no setor de construção de pirâmides; o incesto entre a filha de um faraó e seu irmão, que seguiram cegamente o exemplo de seu pai. Contudo, com o ouvido maltratado, Osíris bateu seu cetro no chão. O solo tremeu. E as línguas do deuses pararam de se mexer. Depois hasteou seu chicote, símbolo do seu poder jurídico, fazendo um estrondo no ar.

Veio o silêncio, e também o julgamento.

Em passos lentos, Anúbis aproximou-se de um Matheus apático, sem muito vigor na face. Era mais alma que carne e osso. O réu sentiu sua mão ser tocada pela de Anúbis. E logo recuou, espantado.

— Não faça isso, mortal! – berrou Anúbis, com o semblante muito fechado. – Não ouse não ser conduzido por um deus em pleno tribunal! – Osíris ameaçou levantar-se, igualmente incomodado.

— Com todo respeito, Anúbis, é impossível segurar sua mão. – disse, olhando para a cabeça de chacal. – Está gelada demais. E eu ainda pensava que os deuses não eram adeptos do ar condicionado.

— Não ouse dirigir a palavra sem ser perguntado, seu infame. – e Anúbis explicou-se. – O ar condicionado está quebrado faz tempo. Recentemente, um mortal da manutenção foi assassinado próximo a esfinge. Confundiram ele com um turista. A empresa nunca teve coragem de enviar outro funcionário.

Brás Cubas segurou o riso, e alguns deuses também. Aparelhos de ar condicionado pareciam ser um problema pertinente não apenas aos vivos.

Osíris bateu seu chicote contra o chão, mais uma vez. Isso sinalizou a Anúbis que começasse a pesagem. Pegou o coração de Matheus. Sentiu sua textura e massa. Balançou-o na mão poucas vezes, logo após emitindo um sorriso sarcástico. Na função de bobo da corte das catacumbas, ainda emulou o coração caindo, como se fosse ele pesado demais, antes mesmo de ser medido.

Quando ia colocar o órgão do réu em um dos lados da balança, notou algo estranho. Os deuses se entreolharam, aturdidos.

— Cadê a maldita pena de avestruz? – indagou Osíris. Bras Cubás sussurrou algo no ouvido do deus dos Mortos. – Como assim exportaram todas as penas de avestruz para o mercado chinês? Dragão nem pena tem!

— Se me permite, vossa excelência… – levantou o dedo um dos deuses. E Osíris consentiu. – Em virtude do crescimento da demanda de penas, temos exportado grande parcela da produção para a China.

— Maldita recessão econômica. Nem um julgamento mais consigo conduzir. – queixou-se Osíris.

— Porém… – continuou o deus. – temos utilizado penas de fabricação sintética chinesa nos últimos julgamentos. Elas não têm a mesma composição, mas equiparam-se em peso às penas originais.

— O quê?! Exportamos as nossas para comprarmos as deles? – e o presidente do tribunal levantou-se. – Isso é um absurdo. Deixemos a economia de lado, senhores. Estamos em um tribunal dos mortos, que os deuses nos guardem.

Em poucos segundos, uma pena similar a uma de avestruz fora depositada no outro prato da balança. Um barulho de correntes foi percebido. Era a balança que movimentava-se, oscilando alternadamente. Matheus sentiria seu peito bater mais forte, estivesse seu coração ainda nele. Sua alma estremeceu, contudo. De repente, a balança parou.

Ficaram todos mudos. E dois deuses levantaram o braço. Dois pecados haviam pendido o coração centímetros abaixo da pena. Amit, neste instante, molhou os lábios, faminto. Estava ávido para devorar o coração de Matheus.

— Matheus dos Anjos, você está sendo indiciado pelos seguintes crimes: vontade de matar outro ser humano e cobiça à mulher do próximo. – anunciou Osíris. – Como você se declara em relação a eles?

— Inocente, vossa excelência. – todos pasmaram perante o impactante perjúrio de Matheus. Osíris, confuso, coçou as faixas que cobriam seu rosto esverdeado. Em seguida, proferiu.

— A balança não erra, e denuncia seus crimes em vida.

— Se não erra para mim, digo errou para muitos, meritíssimo. – Osíris ameaçou enfurecer-se. Todavia, manteve-se ouvindo. – Tive sim vontade de matar outro ser humano. Vingança, ira, ódio são sentimentos que ferem este tribunal, porém existem dentro de nós, ultrapassando os séculos juntamente aos nossos corações. Depois que se manifestam, e desaparecem, trazem o remorso, que cavalga o cavalo negro da moral. Você mesmo, vossa excelência, foi retalhado por seu irmão Set, sangue do seu sangue. Você pesaria o coração do seu irmão com a mesma pena com a qual o meu foi pesado? – e Matheus prosseguiu, ignorando o rosnar de dentes de Amit. Queria antes o esclarecimento, depois a justiça. – Quanto à cobiça pela mulher do próximo, recorro a jurisprudência. Olhe para o seu lado, meritíssimo. Ali, verá aquele que amou a mulher de outro durante anos, nas entrelinhas da sociedade carioca do século XIX. Brás Cubas, seu honesto conselheiro jurídico, não poderá negar que sustentou as aparências para que nutrisse seu desejo.

Osíris olhou na direção de Brás Cubas, ou pelo menos onde ele deveria estar. O defunto autor desaparecera. Ouviu-se um ruído de pés correndo. Depois, uma tocha se apagou. Então duas. E Três. E quatro. Até que apagaram-se todas. Os deuses começaram a uivar. Como lobos irados, reunidos na alcateia dos mortos, vozes uníssonas gritavam:

— “Ninguém foge ao Tribunal dos Mortos! Sua família padecerá dos mesmos males que a sua punição! Ninguém foge ao Tribunal dos Mortos!

Matheus percebeu dedos gélidos agarrando-se firmemente em seu antebraço.

— Venha. Falas demais, como eu, e acabas de perturbar enfurecidos deuses egípcios. – era Brás Cubas.

— Mas e meu coração?

— Esqueça-o. Só se morre uma vez. Depois que publicaram minhas memórias, eu teria sido punido de outra morte em qualquer tribunal que fosse. E, no entanto, olhe para mim: ex-conselheiro jurídico de Osíris, graças a sua petulância. – e Matheus percebeu um ar de riso se afastar, ainda puxando seu braço.

A ação fora muito rápida. Logo estavam do lado de fora da câmara, Brás e Matheus. Os dois se olharam, como dois fugitivos de uma penitenciária prestes a se separarem. Um pela esquerda, outro pela direita.

Após cinco minutos de corrida, Matheus voltou-se para trás. Há dezenas de metros de distância, viu os deuses do lado de fora da câmara mortuária. Com tochas nas mãos, procuravam incessantemente pelos fugitivos. Respirou fundo. Mas nada veio ao seus pulmões. Estava morto, afinal.

Porém, antes que voltasse a correr dos 42 deuses, Anúbis, Amit e Osíris, foi interrompido.

— Nietzsche?! – bramiu, assustado.

— Sim, eu próprio. – respondeu-lhe o bigodudo. – Mas não temos tempos para prosa. Outra hora convido-te para conversarmos em minha caverna.

— Mas o que você está fazendo aqui?

— Eu? – e soltou uma grandiosa gargalhada. – Não és o primeiro a fugir do Tribunal de Osíris. Conheço ótimas rotas de fuga. Siga-me.

Autor: Lucas Vinícius da Rosa