Relação pingue-pongue

Desde muito pequeno, fui submetido às rebatidas de opinião ou posicionamento entre meus dois pais. Abrindo um parêntese, pergunta-se: numa partida clássica de jogo de pingue-pongue, qual seria o número de jogadores? Dois, claro. Dessa forma, como num jogo de pingue-pongue, sendo eu a bolinha, e os jogadores meus pais, acostumei-me, com o tempo, a esse vai-e-vem divergente e rotineiro de argumentação.

Por política materna – não me recordo de meu pai firmar decisão efetiva sobre isso –, quase sempre, com algumas exceções, fora-me negada a permissão para visitar meus amigos durante dia de semana. Em definitivo, todos os dias são da semana. Todavia, segundo nossa Constituição familiar, promulgada em 30 de Outubro de 1989, dia do meu nascimento, era determinado que dia de semana era aquele compreendido entre segunda e sexta-feira.

Certa vez, quando convidado para ir à piscina na casa de um amigo, numa quinta-feira à tarde, resolvi tentar a sorte e desafiar à cláusula pétrea firmada pela minha mãe. Cheguei até ela, calmamente. Olhei-a da ponta dos pés à cabeça. Não havia sinal qualquer de mau humor. Boas condições para perguntar, portanto.

— Mãezinha, como você está linda hoje! O pessoal no trabalho vai te elogiar hein… – falei ternamente.

— Hum, obrigada, meu filho. – ela afavelmente respondeu. Depois, fazendo expressão de sorriso irônico, perguntou. – O que você quer dessa vez Lucas?

— Ah, mãe, vai rolar uma piscina no Luizinho hoje à tarde. Vai todo mundo da minha sala. Até umas garotas da sétima série B, acredita? – soltei a ideia, sem interrogá-la diretamente sobre a possibilidade de ir.

— Mas hoje é quinta-feira, Lucas. – e pôs-se a pensar durante poucos instantes. – Bem, pergunte ao seu pai, ele tá dormindo na sala.

Cabisbaixo, fui até a sala. Meu pai roncava, expirando, em intervalos regulares, suspiros expressivos. Ele era um esportista, um campeão em apneia do sono. Monitorei atentamente seu ronco, buscando o momento certo de interromper a guerra dele com seus pulmões. Juntei coragem, e o acordei.

— Pai? – disse-lhe, cutucando seu ombro esquerdo. Ele abriu os olhos, só um pouco.

— Diga Lucas… – retrucou-me sonolento.

— Então, vai rolar uma piscina no Luizinho hoje à… – e antes que eu pudesse terminar minha explanação, sequer havia chegado a parte das garotas da outra sala, ele irrompeu minha fala.

— Pergunte pra sua mãe, filhão. – e voltou a dormir.

Tendo percorrido as duas partes da mesa de pingue-pongue, enxerguei-me estado um pouco confuso. Fechei meu semblante. Chateado, com sunga de filho de vó por baixo das vestes, tranquei-me no quarto. Obviamente, não haveria piscina no Luizinho, nem mesmo as garotas da sétima B. Não bastasse a Constituição draconiana, havia, adicionalmente, o problema da hermenêutica; ninguém queria interpretar aquelas leis!

Anos passaram-se. Dez deles. Uma década após não ter ido à casa do Luizinho, portanto, eu estava visitando meus pais, no feriado da Páscoa. Como todo matrimônio que se preze possui contendas, assim também o era o casamento dos meus pais. Por motivos bestas, meras pecuinhas instituídas em pormenores, eles costumavam esbranquiçar os cabelos de fios já brancos.
No sábado de Páscoa, a noite caiu. Deitado no sofá amarelo da sala, eu aguardava que o jantar ficasse pronto na cozinha, onde encontravam-se meus pais. Quase dormindo – se roncando, não sei –, fui despertado por uma discussão na cozinha.

— Quem foi que colocou a carne na parte de baixo da geladeira? – bradava minha mãe.

— Fui eu, menina. – respondeu à altura meu pai.

— Mas você não tá cansado de saber, homem, que carne na noite anterior a ser assada não pode ficar ali? – falou uma mãe agoniada.

— Ah, mas não é possível! – bramiu um pai impaciente. – Que diferença faz a carne em baixo ou em cima. Coloquei embaixo para eu que pudesse amanhã, logo pela manhã, temperar ela e colocar tudo na churrasqueira!

O debate, distante de uma conclusão que agradasse aos dois, prosseguiu por mais um tempo. Então, posteriormente, cessou. Sem dar muito atenção a cena escutada, voltei-me a minha inércia, em posição esparramada pelo sofá.

Cinco minutos depois, a figura de meu pai adentrou meu campo de visão. Sentou-se no sofá de somente uma posição, que ficava ao lado do qual eu estava. Ajeitando os óculos, em tom de indignação, incontido, ele desabafou. Disse-me sobre as pequenas brigas que o incomodavam. O quanto a sua mulher, minha mãe, implicava com tudo. Como bom filho, fiz questão de escutá-lo. Ouvi quietamente, sem pronunciar nada que pudesse me tornar parcial diante daquele irrisório conflito.

— …e é por isso, meu filho, que te digo: “Vai casar, vai. Vai casar pra ver no que dá…” – aconselhou-me sarcasticamente.

Uma vez finalizadas as lamúrias paternas, resolvi ir na cozinha pegar um copo d’água. Sem surpresa alguma, a cena da sala repetiu-se. Contudo, desta vez, a lamuriosa fora minha mãe. Contou-me sobre as mesmas pequenas brigas, antes descritas por meu pai. Porém, narrou-as sob sua perspectiva, como fazem, naturalmente, dos discutidores que almejam a vitória da argumentação. Novamente, como bom filho – eu devia ser um bom filho, de fato, afinal sou eu o narrador desta crônica, ora essa! –, ouvi os dizeres e transpirações da cozinheira minha mãe. Finda as reclamações, ainda sobre a carne no lugar errado da geladeira, retornei à sala.

Continuei a conversar com meu pai, porém sobre outros assuntos. Lá da cozinha, com audição de coruja, minha mãe escutou resquícios da nossa conversação. Em segundos, fez-se imponente na sala. Iniciaram mais uma vez a discussão. No entanto, dessa vez, eu era o intermediário de todo o litígio. Meu pai falava a mim, tentando convencer minha mãe. Minha mãe, por sua vez, dirigia suas palavras também a mim, querendo justificar-se perante meu pai. Jogo de pingue-pongue, como de praxe, ainda que dessa vez eu fosse a rede, e não a bolinha. A trocação de farpas perdurou mais um ou outro minuto. Até que me cansei. Bastava!

— Pois bem, casal, me escutem agora vocês dois. – e iniciei minha fundamentação. – Falando em termos genéricos, as relações humanas são difíceis, porque envolvem, essencialmente, seres humanos. Cada um, cada ser humano, provavelmente vai ter suas próprias opiniões sobre um assunto. A relação, portanto, meus pais, só será harmoniosa se vocês encontrarem um ponto em comum do qual concordam. Qual seria o ponto de concordância entre vocês dois, neste momento? Seria o fato de discutirem por algo muito pequeno, muito pequeno mesmo. Veja como é ridícula esta discussão. Vocês estão brigando um com o outro por causa de uma simples posição de carne na geladeira. Que diferença isso faz? Parem pra pensar: é apenas um pedaço de carne na geladeira! Não é como se estivéssemos decidindo sobre a propriedade da Faixa de Gaza entre o Estado de Israel e os palestinos. Então por que essa casa parece uma Faixa de Gaza? – e concluí. – Muitas vezes descontamos nossas frustrações na pessoa mais próxima da gente. Não porque não gostamos dela, mas porque a intimidade de uma relação de anos, paradoxalmente, em alguns casos, nos faz desferir faíscas sobre quem mais amamos. É só um pedaço de carne. – e respirei.

Meus pais entreolharam-se. Pareciam não crer no que seu filho mais novo havia discursado; aparentavam, enfim, estarem orgulhosos. Minha mãe, então, falou.

— Nossa meu filho, como você está mudado. – no que eu de imediato rebati.

— Mudado o escambau mãe! Na teoria, tudo o que eu falei é lindo. Espere só daqui dez anos, quando eu estiver casado. Vai faltar carne pra tanta discussão!

Autor: Lucas Vinícius da Rosa