Paletó abotoado

Os Cruz moravam na casa número 1636, travessa Gregório de Matos. Naquela residência, de segunda à sexta-feira, dois pais eram levados à loucura pelo seu filho mais novo, Matheus. Eles sabiam que as crianças reservam em si muitas perguntas. Não imaginaram, no entanto, que teriam tanto trabalho em acalmar a curiosidade natural do caçula.

Pouco antes do meio-dia, a campainha da casa 1636 sibilou. A senhora Cruz, desesperada com suas panelas no fogo, enfiou o pescoço pela janela da cozinha. Desse modo, contorcida para o lado de fora, era possível observar o portão. Assim que identificou Matheus, bradou.

— O portão tá aberto! – e enxugou as mãos no avental, sumindo residencia a dentro, em seguida.

Matheus vestia o uniforme da escola São Pedro. Uma calça azul marinho escura, com duas grandes listras vermelhas laterias; uma em cada perna. A camiseta era branca no centro, com duas faixas de razoável largura nos cantos. Na altura do peito, no lado esquerdo, havia um logotipo formado pela imagem do santo. Abaixo dele, uma inscrição com o nome do colégio.

O menino não gostava de se vestir igual a todos na sua escola; talvez São Pedro lhe parecesse um santo muito triste. A senhora Cruz defendia que isso tornava os alunos iguais, diminuindo as diferenças de classe. Matheus torcia o nariz quando assim respondido. Ora, na sala dele havia pessoas que escreviam com a mão direita, outras com a esquerda. Uns preferiam rock; outros, rap. Até na hora de vestir a camisa da seleção brasileira há gente que opta pelo trapo argentino.

Assim que entrou na cozinha, a senhora Cruz fitou o garoto. Tornou às panelas. Enquanto mexia as colheres e controlava o fogo, contudo, notou seu filho estático ao seu lado. Ele estava inquieto. Dos possíveis filhos que poderia ter, Matheus fora a possibilidade mais intrigante oferecida pelos 23 genes maternos.

— O que foi dessa vez, Matheus? – interrogou a cozinheira. O menino olhou para ela. Mordeu o lábio inferior, como se hesitasse perguntar algo. Depois destravou os dentes. Desistiu. – Matheus, meu filho, eu tenho conheço. O que é que te perturba agora?

— Ah. – o garoto levou as unhas à boca, roendo a ponta do dedo anelar. – Não quero mais ir para a escola.

A senhora Cruz, de súbito, parou de mexer as panelas. Encarou seu filho, e disse.

— Como assim não quer mais ir à escola, Matheus? Toda criança deveria frequentar o colégio. E você estuda em um ótimo lugar, sabia disso, mocinho?

— Sabia. Mas não vou mais pra escola, mãe. – e fez um curta pausa, olhando para sua vestimenta. – Finalmente vou me livrar dessa roupa. Não quero ser igual a todo mundo, não.

— Aconteceu alguma coisa no colégio? Você brigou com alguém, Matheus?

— Não! Não briguei, mãe. Juro pela mãezinha mais sagrada desse mundo. Que é você, é claro. – e fez o sinal típico dos juramentos infantis, beijando os dedos indicadores, dispostos em forma de cruz. A senhora Cruz aquiesceu. Depois, disfarçou. – É que…

— É que…

— O padre Anchieta vai morrer.

Anchieta era o último dos fundadores do colégio São Pedro ainda vivo. Além de sacerdote respeitadíssimo na comunidade, conduzia elogiadamente o cargo de diretor.

— De onde você tirou isso, menino?

— Ele tá com câncer. De pulmão. – a senhora Cruz perdeu o fôlego. Matheus prosseguiu.

— O pessoal lá no São Pedro tá dizendo que é porque ele fumava muito. Eu sempre senti um cheiro estranho nele. Parecido com o do pai, quando volta escondido lá do fundo de casa.

— Meu Deus do céu. E ele está bem? Vou ligar para o colégio depois do almoço.

— Disseram que vai morrer, mãe. Ou seja, não vou mais pra escola.

— Matheus, o padre Anchieta vai sair dessa. E a saúde dele não tem a ver com sua ida ao colégio. Lugar de criança é na escola, e pronto.

— Por quê?

— Porque estudando você vai ser alguém na vida. Terá um bom emprego. Não passará fome.

— O padre Anchieta tem um bom emprego. Você disse que meu colégio é bom. E gorducho do que jeito é, acho ele não passa fome.

— Matheus, olhe o respeito com os enfermos. – Matheus abaixou a cabeça, em sinal de desculpa.

— Tá. Mas ainda não quero ir pra escola. – a senhora Cruz bufou. Apoiou os punhos na cintura, e fixou Matheus com seriedade, que retrucou. – E se eu tiver câncer também, como o padre Anchieta?

— Vire a boca pra lá, menino. Ninguém vai ter câncer aqui. E seu pai disse que vai parar de fumar. Fumar não faz bem à saúde.

— Vou morrer como o padre Anchieta, não vou mãe?

— Matheus!

— Vou sim. Todo mundo morre, não é? Já que vou morrer, não preciso ir pra escola. Tudo o que aprendi vai pro cemitério comigo mesmo. – e levantou os ombros.

— Matheus!

— Ou você acha que vou levar pra debaixo da terra o que me ensinam no colégio? Que ingênua, mãe!

— O aprendizado é sempre passado pra frente, meu filho. Você vai passar o que aprendeu pra outras pessoas, e essas para outras. Porém, pra isso, é necessário antes ir pra escola, e estudar bastante. – e voltou a dar atenção às panelas. – Por que você não vê um pouco de televisão? Seu pai tá chegando, e o almoço quase pronto.

Ainda não vencido pelos argumentos da sua mãe, o garoto foi até a sala. Ligou a TV, e fixou os olhos na programação.

— “… e voltamos para o estúdio com nosso apresentador Canabrava.” – anunciou uma voz dramática.

— “A situação é insustentável, caros cidadãos.” – a voz de Canabrava era escarrada pelo alto-falante do televisor, como se estivesse na própria sala. Matheus assistia com atenção. “A sociedade civil não merece esses meliantes desgraçados perambulando pelas ruas. Na calada da noite. Invadindo casas de pessoas de bem, trabalhadores. Entram, roubam. E depois trocam o que foi roubado por drogas. São animais violentos, antissociais…. “

— Matheus?! – um grito adveio da cozinha. – Ponha os pratos na mesa, por favor!

— “…elementos que se morressem jovens, fariam um serviço ao mundo.” – Canabrava era incansável em sua eloquência. – “Lugar de vagabundo é na sepultura, com a boca cheia de formiga. Pau que nasce torto não se endireita, meu amigo telespectador.”

À medida que distribuía os pratos pela mesa da sala, onde costumeiramente almoçavam, Matheus matutava. Algo não batia. Não em relação à quantidade de pratos, garfos e facas na mesa. Mas a respeito da vida, e da morte.

— Sai da frente, que a panela tá quente. – brincou a senhora Cruz, esquivando-se de Matheus. Depositou a panela na mesa. Voltou à cozinha. Um segundo depois, trouxe um vasilhame de saladas. Terminado o ritual de preparação, Matheus dirigiu-se à sua mãe.

— Mãe, o padre Anchieta…

— Matheus, não me venha com essa história de não ir para a escola de novo.

— Não se preocupe, mãe. Eu vou pra escola sim. – a cozinheira espantou-se.

— O Canabrava disse que vagabundo merece morrer. Como não quero morrer, não posso ser vagabundo. Vou pra escola sim, mãe.

— A morte não é merecimento pra ninguém. Você estava assistindo ao Canabrava, é meu filho? O programa dele é sensacionalista e… – hesitou continuar. Porém, percebera que o jocoso apresentador convencera seu filho a ir à escola. Neste momento, um barulho de carro ouviu-se de fora. – Seu pai chegou, que ótimo. Adivinhou a hora certa em que o almoço ficaria pronto.

— Mãe. – balbuciou Matheus, puxando a ponta do avental de sua mãe. Ela olhou-lhe. – Mas…se vagabundos merecem morrer, e o padre Anchieta não é vagabundo, por que ele tá morrendo? Por que pessoas boas morrem?

A senhora Cruz, perplexa e muda, não respondeu. Afagou os cachos de Matheus, e abraçou-lhe.

Minutos depois, sentados todos à beira de seus pratos, a família Cruz almoçava em silêncio. O telefone, de repente, tocou em três chiliques muito agudos. O som ecoou em todos os tímpanos, como tocado por trombetas de anjos cruéis. A senhora Cruz levantou-se, e atendeu a ligação. Ouviu por alguns instantes, calada. E desligou.

— Quem era, querida? – perguntou o senhor Cruz.

— Era do São Pedro. – ela engoliu a saliva, e falou em tom cabisbaixo, com a pergunta anterior do seu filho a lhe maltratar. – Você não precisa ir ao colégio amanhã, Matheus.

Autor: Lucas Vinícius da Rosa