O restaurante

A rua se agitava como costumeiramente exigia o ambiente urbano. Carros importados, que misturavam-se aos outros veículos de menor valor, cada um buscando ostentar o seu próprio valor, perambulando pelas vias. Andavam pela rodovia que passava em frente ao restaurante.

Compartimentado por paredes muito transparentes, confeccionadas por vidraças vindas da Europa, funcionava o notável estabelecimento para estômagos magros. As refeições que lá se serviam eram de nomes estrangeiros. Pronunciava-se cada prato com biquinho nos lábios, enrolando a língua para que o garçom dissimulasse entender outro idioma que não o português.

Tudo era muito límpido. As cadeiras estavam arranjadas em grupos de quatro; não obstante, havia mesas com mais lugares; estas reservadas a ocasiões de fechamentos de negócios corruptos ou meramente oportunos, quiçá situações que exigiam mais pompa e igualmente mais vagas para famílias maiores.

A mãe, assim que chegaram ao lugar, fez que questão de pedir um lugar ao seu filho.

— Queremos as mesas maiores. – e, como se de fato precisasse de tantos lugares, sorriu para o garçom que a atendia melhor que uma rainha. Ele a obedeceu, dobrando o braço direito sobre o peito.

— Boa noite, senhora. Seu lugar já esta sendo providenciado.

A mulher se sentou. Todavia, antes disso, puxou ela a cadeira para seu filho. Seu marido ainda não se fazia presente;  detivera-se na recepção do restaurante, onde servia-se de um whiskey envelhecido em fazendas as quais fingia ser quais eram.

Uma vez assentados, olharam os cardápios. Ora, nesta situação de ilustríssima educação, não se necessita dizer que os menus estavam à disposição num primeiro momento. A mulher vasculhou com seus olhos, assim que abriu o livreto de opções, as variedades exóticas servidas em pratos quentes, porém de cerâmica demasiado fria. Não sentiu necessidade da opinião de seu marido sobre sua decisão. Levantou sua mão, sinalizando ao garçom. Depois, acariciou falsa e automaticamente os cachos de seu filho.

Do lado de fora do restaurante, quando o sol ainda se punha, uma criança grudou suas mãos na vidraça. Aquelas mesmas de origem europeia. Tinha nove anos de idade; talvez alguns a menos; quem sabe outros a mais; sabe-se lá a idade dos não registrados em cartório. Os pequenos dedos escorriam pela superfície lisa do vidro. Era indeterminado o que ela queira, ao menos até este ponto da narrativa.

O pai que tomava o whiskey virou o último gole de seu copo. Deixou apenas uma pedra de gelo em seu fundo. Caminhou um pouco, e sentou-se à mesa da sua família. Não que a família de fato fosse realmente sua. Mas, se de sangue se fazem laços, aqueles deveriam ser realmente seus. Pelo menos em sua lógica sociopata. A criança do lado de fora, ainda com os dedos úmidos presos ao vidro, assistia à cena embasbacada de fome, faminta de afeto.

A mulher rapidamente decidiu-se, ao passo que o marido confortou-se ao seu lado.

— Gostaríamos de salmão com molho… – e torceu seus lábios, forçando a pronúncia. Consultaria seu filho sobre seu desejo, mas ocupou-se em encarar se marido. Sentiu-se triste. Casamentos de aparência dignificam apenas as impressões dos outros. Perdeu o apetite, mas fingiu não perdê-lo.

O menino posto do lado de dentro, cansado do silêncio maltratante de seus pais, que se perturbavam por olhares afiados, finalmente notou alguém da sua idade do lado de fora. Pensou em sorrir. Porém, se visto fosse em tal flagrante delito, ato criminoso para as crianças ricas, olhando para outra pobre, seria repreendido por seus pais inquisidores. Enfiou suas mãos nos bolsos da calça. Como fazem as crianças desejosas de não serem notadas, ilustrando comportamento quieto.

Assim que chegou o salmão, deste molho impronunciável até para este autor – o pai já havia solicitado outro whiskey, e a mãe achava-se só no banheiro, retocando inutelmente a maquiagem definitiva, ou em segredo enxugava o seu choro, simplesmente –, o menino apanhou o garfo. Em seu prato muito branco, cortou o peixe estirado na porcelana. Fez questão de que fosse uma fatia muito grande. Apanhou também dois guardanapos.

O menino bebeu um copo d’água. Enquanto conduzia o líquido à sua boca, olhou outra vez para a vidraça, na qual as mãos sujas de alguém da sua idade manchavam um vidro limpo. Sem surpresa, afinal as crianças têm em si mais perspicácia que os adultos, ele se comoveu. Seus pais, que não conversavam até então, não poderiam falar que o mundo era pérfido; por desconhecimento ou por negligência. Desigual e injusto para os que nasceram do lado de fora dos restaurantes, uns mantinham dietas de peixes, outros de falta de abraços.

Os dois adultos, indiferentes à criança, de súbito, travaram uma discussão qualquer; dessas que conduziam com rotina em sua própria casa. A disputa verbal em nada tinha a ver com o peixe que pediram. Talvez com o whiskey dele. Ou com a maquiagem dela. A criança em si era meramente um cavalete em meio aos saltos de dois cavalos, que pelo que se vê mal podiam saltar.

— Termine seu copo, seu desgraçado. – ela disse.

— Termine você seu serviço de vaidade, tarja preta do meu cartão de crédito ilimitado. Dou o meu sangue no escritório, para que você tenha suas regalias infantis.

— Que escritório? Aquele em que você brinca de casinha com a secretária?

— Aquele que lhe traz dinheiro para suas superficialidades!

— O quê?! – a mulher não notara que estava sem seu garfo.

— Bingo! Isso mesmo! – ele gritava na altura da sua embriaguez.

— Olhe sua boca! Nosso filho está sentado ao nosso lado. Isso não são modos.

Assim que olhou para à sua direita, seu filho ali não mais se encontrava. Sua discussão era comovente, para eles tão somente. Tal comoção subtraiu-lhes a atenção ao ponto que não viram ele sumir.

Do lado de fora do restaurante, havia um prato de porcelana, depositado no meio-fio. As duas crianças, ambas carentes das paternidades verdadeiras, sentavam-se sorridentes, uma com roupas rasgas, outra, vestida por fios de seda ourindos doutro país. Tinham, cada uma, um garfo em cada mão. Deliciavam-se com o peixe de molho esquisito. Tão estranho era aquele caldo, que até limparam com os dentes de metal o líquido vermelho. A carne branca, no entanto, encantava o paladar de um e de outro.

Quando os dois condecorados clientes saíram do restaurante, menos desesperados do que estavam em sua discussão, ressalte-se isso, encontraram seu filho. Distinguiram qual deles era o seu pelo sangue vermelho vivo, raspado pelo garfo de prata finíssima, caído sobre a camiseta cuja marca pertencia a um estilista vegetariano.

Antes que lhe puxassem pelo braço, se possível fosse dissociar o abraço sincero de duas ingenuidades puras, contudo, as duas crianças já se haviam alimentado entre si. E sorriam mais do que qualquer um dos que estavam do lado de dentro do recinto. Afinal, lá, as pessoas ocupavam-se em beber o que lhes serviam, e comer o que não pescaram.

Autor: Lucas Vinícius da Rosa