Ao lado do divã

Jim Morrison trajava sua costumeira veste excêntrica. Uma calça de couro erguia-se até a altura do cós, justapondo-se a seu corpo. A camisa, dessa vez, porém, era branca e sem adornos. Naquela manhã, assim também vestia-se a sua alma: sem adereços ou tecidos majestosos. Sentia-se perturbado, no entanto. E seu pensamento o colocou a caminho, novamente, do consultório de Breuer.

Como nas outras vezes, com seu punho, deu três batidas na porta. Logo abaixo da plaqueta, cuja inscrição indicava “Dr. Josef Breuer”, havia um recado. Dizia que, naquele dia, Breuer não atenderia paciente algum. Morrison estremeceu.

Sem relutância, fez outra vez o movimento das batidas na porta. Fora em vão, contudo. Calmamente, apanhou seu cantil no bolso trazeiro da calça. Desrosqueou a tampa, e bebericou um pouco do mais puro whiskey. A bebida desceu rasgando seu esofago, momento em que engoliu um fragmento do seu sofrimento.

Morrison sofria particularmente neste dia, devido a um sonho que tivera na noite anterior. Sonhara com uma mulher, que segurava nos braços uma criança. Ambas as personagens choravam, e vestiam roupas paupérrimas. A mulher, ao pé da rua, pedia esmolas aos que passavam. A criança sequer chorava, como que acostumada a tal situação de mendicância. Em verdade, às vezes, quando necessário, com um cutucão a mãe fazia o infante chorar. Isso auxiliava-lhe em seu procedimento. Morrisom atravessou-lhes o caminho. Porém, estando nu, nada podia oferecer a mulher. A ausência de bolsos o impedira de dar qualquer quantia que fosse. Sequer um tostão havia consigo. Restou-lhe apenas uma lágrima, que escorreu pela sua face e, quando tocou o chão, fez-lhe acordar.

Cinco minutos após a chegada de Morrison ao consultório, alguém se aproximou de onde ele estava. Era Breuer, que carregava consigo uma feição debilitada, rebaixada. O médico analista surpreendeu-se, sobressaltando-se ao ver Jim.

— O que você faz aqui, Jim? – disse-lhe. – Peço desculpas se isso soar como rude, porém hoje não atenderei paciente algum. – e apontou para o recado fixo à porta.

— O que aconteceu? – Breuer encarou Morrison, admirado eventualmente pela inversão de papéis entre paciente e analista.

— Jim, infelizmente não me sinto disposto hoje. Talvez você devesse voltar em outra oportunidade. – e respirando profundamente, explicou-se. – Quando eu estiver atendendo.

Morrison estava compadecido da aflição de Breuer. Dado isso, esticou seu braço, em cuja ponta havia o cantil de whiskey. Ao oferecê-lo ao médico, este com surpresa o aceitou. Mais surpreendentemente ainda, pôs-se a falar, sentindo-se mais calmo devido a bebida ingerida.

— Há dois dias, eu voltava do consultório e me deparei com uma mulher, na rua, que pedia esmolas. Sua justificativa era a compra do leite de sua filha, que estava em seus braços. A criança, em princípio, não chorava. Mas, à medida que eu não atendia ao pedido da mulher, a pequena menina pôs-se a chorar intensamente. Me senti naquele momento responsável em ajudá-las. Saquei minha carteiro do bolso, e dei a ela uma considerável quantia. A mulher me agradeceu. – Morrison estava paralisado, tamanha a semlhança da cena descrita por Breuer e seu sonho. – E a criança parou de chorar. No meio daquela noite, porém, acordei assustado. Um pensamento me veio a mente, como um relâmpago, anuciando que aquela mulher fora minha paciente anos atrás. Como eu pudera não notar?!

Morrison, ao passo que acompanhava a narração, furtou das mãos de Breuer o cantil, e tomou um generoso gole. O médico prosseguiu.

— Transtornado, logo na manhã seguinte, cancelei todos meus pacientes, e me dispus a encontrar Camile. Sim. Observe, Jim, que me lembrei do nome dela assim que acordei. Fui até o lugar onde a tinha visto. Próximo à calçada em que pediam esmola, me sentei num banco de madeira. E ali permaneci, esperando. Não sentia fome. Nem sede. Apenas me maltravava a ideia de uma paciente, que eu jurava ter retornado a sanidade, ser atualmente um mendigo. Será que fui incapaz de entendê-la? Será que falhei em dar conforto ao seu abrigo psicológico? Porque são as mentes pertubardas, Jim: carentes de terreno seguro para que possam repousar de seus traumas, das inconveniências que advém da sensibilidade.

— Você ficou ali sentando esperando que ela voltasse? – interrogou Morrison. E Breuer, desta vez, foi quem furtou das mãos alheias o cantil com whiskey. Bebeu, respondendo em seguida, enquanto mexia em seu bigode pontiagudo.

— Acredito que sim. Na verdade, fui até lá com a intenção de entender o caso com outra perspectiva. Mas, confesso que existia uma vontade oculta de encontrá-la outra vez. Convidá-la ao meu divã, coisa que seria muito mais valiosa para ela do que o dinheiro que lhe dei.

— Interessante. Existe uma determinada culpa na sua fala. Você se sente culpado Breuer? – Jim Morrison parecia conduzir um sessão de análise inesperada, como se fosse ele o analista em questão.

— … – Breuer respirou fundo, pensativo. – Sim! Me sinto culpado pela condição atual da mulher. Seus dentes podres e suas roupas peśsimas me maltratavam a visão dos transeuntes. Mas a mim, maltratava a alma. Eu transpiro agora remorso em ter alimentado o estado mediocre dela; porque a solidariedade que prestei só fez afundar mais a sua condição de mendigo. – Morrison aproximou-se dois passos do médico.

— Entendo seus sentimentos. E eles mesmos têm relação com o motivo da minha visita. – e Jim sorriu graciosamente, como numa conclusão tomada a partir de uma epifania. – Eis que você me explicou, sem saber, um pouco mais de mim próprio. – Morrison, a seguir, contou-lhe o sonho de duas noites atrás. Breuer admirou-se.

— Você está correlacionando a sua incapacidade em ajudar a mulher do seu sonho com a minha experiência. E os cenários, de fato, parecem se sobrepor perfeitamente. A sua nudez, entretanto, constrata com o meu gesto de abrir a carteira. Enquanto você não podia ajudar, mesmo que quisesse, eu prestei um socorro. Um desgraçado socorro, porém. – e Morrison complementou o raciocínio de Breuer.

— Vejo essas situações chocantes como cruciais a nos compreendermos. Ora se não são essas as nossas reações, tanto no sonho como na realidade, à tragédia do gênero humano. A história das civilizações nos mostra quer civilizado é admitir a mendicância, e temer as tragédias, ainda que inevitáveis. Em catarse com a cena da mulher que carregava a criança, senti o mundo sobre meus ombros, me assustei com o trágico e, finalmente, chorei.

A essa altura, o cantil achava-se vazio. No ímpeto de beber mais e prolongar a conversa que mantinha com Breuer, no entanto, Morrison decidiu acompanhá-lo. Retornariam ao ponto em que Breuer foi abordado por sua paciente. Talvez, ela mendigaria outra vez naquela região, e sua filha choraria em troco de esmolas. Ou, ainda talvez, outro mendigo já tivesse ocupado o seu posto.

Autor: Lucas Vinícius da Rosa