Vapor confinado

Vapor

Não existem quaisquer sinais nas paredes atrás do fogão. Enquanto o acendo, numa das bocas cuidadosamente coloco uma panela com água. A única sinalização, principiada a fervura da água, é aquela trazida pela minha memória que, ainda que não seja um líquido, parece ter propriedades que carecem, clamam por entrar em ebulição no gesto doméstico mais simples. Então seus olhos surgem na chama, entre o amarelo e o rubro, que, vil fogo que em mim põe-se a arder, não sabe definir o que sou ou sinto, sendo sentimento de profundidade abstrata.

Lembro-me, olhando para água que se aquece (indo-se embora sem permissão), das preces cândidas, todavia inalcançáveis em Dia de Finados, dos parentes aos mortos, sobre as lápides, que jamais irão ressuscitá-los de seus sepulcros, não importa o quanto foram amados — evaporaram-se suas carnes avermelhadas, como pela chama o vermelho agora descasca o negro da panela que, mesmo ela aço inoxidável, evapora tudo, menos minha lembrança ressuscitada: nela você me vem tão doce e morna; com ternura até maior do que tinha antes, com gestos mais delicados do que lembrava-me possuir; o perfume invade a cozinha e se sobrepõe ao cheiro afável dos alimentos; chego a arfar o peito, como se quisesse aspirar, no vácuo, um ar que não existisse.

Porém, súbito dou-me conta que a água quase totalmente subtraiu-se da panela, sendo visível seu fundo seco como está meu peito enxugado. E talvez seja uma boa decisão não fazer o almoço em casa desta vez, optando pela refeição tardia, diante de companhias vazias num shopping center entre casais tolos — logo após seus estômagos cheios e guardanapos sujados, o que mais fazem é olhar as vitrines, a olhar panelas de aço inox de última tecnologia — essas contém o vapor a todo custo.

Autor: Lucas Vinícius da Rosa