Sempre saio de casa às oito horas matutinas e, via de regra, estendo no varal as roupas à noite. Naquela manhã, porém, atrasei-me em minutos preciosos porque não estendera as roupas na véspera, e tive de fazê-lo então. Às pressas, pus-me na rua.
Já num cruzamento, cujo fluxo em todos os dias do ano é inexistente, exceto este, cessei meu passo. A passagem tinha sido obstruída por um caminhão que, pelo que parece, desejava fazer uma curva à esquerda. Não tratava-se, contudo, dessas camionetas quaisquer, utilizadas pelos camponeses modernos para transporte e comércio de frutas. Mas, sim, de uma lombriga metálica, com dizeres na lateral em negrito: “Cuidado. Este veículo tem mais metros que uma ponte chinesa”.
O contratempo no trânsito, decerto, arrematou minha pontualidade – crime intragável para os alemães – ao mesmo tempo que confirmava a data comemorativa em que eu estava – dia de Murphy, ou dia de Sod, para os sisudos ingleses que também gostam de se lascar, apenas não riem disso.
Em geral, trato de manter comigo alguns trocados no bolso. Nada de muito valor. Apenas uma nota de dez, uma de cinco e duas de dois. Computados, portanto, costumam me acompanhar exatos dezenove reais. Essa quantia mostra-se oportuna numa série de situações: quitar uma refeição considerável em ocasiões famintas, fretar um táxi rumo a uma região não muito distante, e é o suficiente para que, se surpreendido por um assaltante, ele não se zangue como faria se eu não tivesse nada, poupando-me da sepultura; desse modo, fica subentendido que minha vida não vale mais que dezenove reais.
Naquela tarde, todavia, eu não tinha um tostão no bolso. Constatação que, infelizmente, só tive depois. Já eram catorze horas, e meu estômago rugia como os leões nas savanas, a espera que suas mulheres, ou melhor posto, suas leoas tragam cravada nos dentes uma zebra morta fresquinha. Sem maior hesitação, entrei no restaurante mais próximo. Servi-me. Sentei. Comi. Bebi. Coloquei os talheres, emparelhados, do mesmo lado do prato – como demanda esse estranho jeito de indicar estar satisfeito. E fui pagar.
— Estava muito bom o almoço. – proferi um elogio, já preparando o discurso para um fortuito desconto.
— Que bom que gostou. Ficamos felizes em lhe atender bem. – e disse, segurando o papelzinho da conta na mão. – A conta deu dezenove reais.
— Dezenove?
— Sim.
— Que bom. Sempre tenho comigo exatos deze… – ao enfiar a mão no bolso, os dedos sentiram apenas o tecido áspero e grosso da calça. – bem…parece que não tenho desta vez. – soltei um sorriso amarelo. Apanhei, então, um cartão de crédito antigo da bolsa que trazia nas costas. Coloquei-o sobre a mesa. Ela encarou o cartão.
— Infelizmente, moço, o sistema está com problema. Hoje, apenas aceitamos pagamentos em dinheiro.
Contorci meu rosto, de forma espontânea e enraivecida. Mas me contive em seguida. E compactuei com uma perversa compra fiada, não fosse adicionalmente ela sórdida e constrangedora: a educada atendente, a quem elogiei o restaurante outrora, era agora a mesma que ameaçava reter meu RG, para a eternidade, se eu não quitasse a dívida naquela mesma semana. Aceitei tal pacto com o diabo, e segui em frente.
Desgastado pela sequência de desventuras, sucedidas todas num mesmo dia, refugiei-me em um bar; isso lá pelas oito horas da noite. Ao menos naquele botequim fedorento de esquina, cujos clientes em geral tinham um aspecto surrado, em suas roupas e em suas faces, aceitavam a moderna tecnologia dos cartões de crédito.
A cerveja estava agradavelmente gelada. “Mas que presente das alturas!”, pensei. Neste instante, começou a chover. Dentro do copo, inclusive. Ah! Mas que maldito cavalo-de-troia são os presentes da terra, como a cerveja; cuidam sempre eles de rivalizar com os do céu; quando isso acontece, chove.
Pela filosofia dos homens, todo indivíduo tem dentro de si um limite. O meu é provavelmente diferente do seu, que é distinto do de fulano, que só não é diverso do de ciclano, porque este já morreu, pelo que ouvi dizer. Esperadamente, meu limite havia sido atingido naquele dia. Desfiz-me do copo, e me dirigi ao caixa.
— Quanto deu? – perguntei.
— Dezenove reais, senhor.
— Dezenove?
— Sim.
— Mas eu tomei apenas uma cerveja! Vocês trocaram as contas?
— É…é… – gaguejava o atendente.
— Ah! Me dê essa conta de uma vez. Passe dezenove reais nessa maquininha parasita da Visa, que por hoje já deu!
— Existem coisas que o dinheiro não compra. Para todas as outras existe MasterCard. – ele retrucou.
— Como é?
— Só aceitamos o selo MasterCard, senhor.
Autor: Lucas Vinícius da Rosa