Regresso ao divã

De aspecto antigo, com ponteiros de cor prata, reluzentes, o relógio marcava quatro horas, pontualmente. Embora mantivesse como característica traços antiquados, a hora marcada era recente e oportuna. Naquele instante, Jim Morrison, um paciente também antigo, adentrava o consultório de Breuer.

— Pensei que não fosse mais vê-lo, Jim…

Jim Morrison nada respondeu. Apenas abaixou os olhos, recluso. Trajava roupas parecidas com aquelas da última sessão, ocorrida meses atrás. Suas pernas sentiam o couro aderido à sua superfície. Uma camisa larga, preta e de malha fina, parcialmente presa à cintura, cobria-lhe o peito. Estava embriagado, vestígio fruto de seu andar um pouco errante. Carregava uma jaqueta na mão esquerda. Tirou-a, e acomodou a peça no dorso da cadeira.

— …de qualquer maneira, fico feliz com a sua visita. – continuou Breur. – O que fez com que você voltasse, se posso perguntar? – e fez um gesto para que Jim se sentasse, que o fez.

Jim permaneceu mudo. Encarava firmemente o chão, profundamente pensativo.

— Tem a ver com a Pam? – o médico irrompeu o silêncio.

— Tem a ver com o que sinto por ela, e pelas pessoas.

— E o que você sente?

O homem da calça de couro titubeou falar. Porém, antes de prosseguir, contorceu seus lábios numa expressão de sede. Enfiou seus dedos no bolso direito, e dele retirou seu fatídico cantil de whiskey. Assim que levou o recipiente à boca, foi interditado pelo médico.

— Jim, acredito que tenhamos um acordo em relação a bebidas alcoólicas nas sessões.

— Eu rescindi esse acordo. Sem meu amigo whiskey, não fico.

Diante da irredutibilidade impenetrável de Morrison, Breuer abriu uma extraordinária exceção, permitindo que seu paciente desse bicadas no cantil.

— … – o médico produziu um ruído com a garganta, chamando a atenção de Jim.

— Você me perguntou o que sinto. Eu sinto tudo o que todos sentem. Talvez com uma sensibilidade e impacto superiores, mas ainda assim as mesmas coisas. Apenas não entendo bem o surgimento da diferença em relação a sentimentos iguais. Acho que a maior dádiva da natureza é produzir sensações semelhantes por diferentes motivos. Agora, quanto à natureza humana, meu bom e velho whiskey me informa outra teoria. – e deu outro gole. – Quando somos alimentados por maus rituais, arranhamos nossa condição mais humana, e não sentimos nem semelhanças, nem diferenças.

— Você se sente alimentado por maus rituais, Jim?

— Fui criado em regime autoritário. Portanto, fui pelo menos uma vez na vida alimentado por um mau ritual. Nossas manias de classificação, que não necessariamente mantém relação com o conceito de respeito, trouxeram hierarquias para sentimentos que estão no mesmo patamar. Estou muito certo de que mestres e escravos independem do que seu coração sente.

— Você se sente oprimido pela maneira como foi criado?

— Me senti, porém não mais. O que me oprime atualmente sou eu mesmo. É um fardo muito grande carregar a sinceridade dentro de si. Ela é muito ácida. Corrói demais, enquanto tenta esclarecer o que sou. No final desse processo, me vejo feliz, quando me olho no espelho. Mas, depois, percebo que me danifiquei muito para tentar descobrir quem sou.

— Quem é você, Jim Morrison?

O jovem paralisou-se. Apanhou seu cantil, e tentou bebericar algo. Todavia, o conteúdo alcoólico havia desaparecido. Nem uma gota restara. Morrison bebia compulsivamente fazia dias. Sua inquietação era levemente apaziguada pelo álcool, ainda que não pudesse ser aniquilada.

Verdade era que o seu fígado queixava-se de tempos em tempos. Mas, não havia ninguém a atender tais queixas hepáticas. Morrison acordava muitas vezes personificado como Prometeu. Urubus arregaçavam seu fígado durante o dia. E, à noite, percebia uma regeneração súbita do órgão. E bebia mais.

Perturbado pela escassez da bebida, Jim levantou-se. Irrequieto, começou a perambular pelo consultório. Levou as duas mãos à altura da nuca. Coçou-a, reflexivo. A cada passo que dava, sua respiração tornava-se mais ofegante.

— Está tudo bem, Jim? – preocupou-se Breur.

— Sim. Mas se não estivesse, gotas de ácido lisérgico melhorariam meu humor. Porém, prometi a Pam que diminuiria meus excesso; e isso inclui o LSD. Não importa. Tenho o álcool como inseparável companheiro. Você não tem nada para beber aqui? – Breur esboçou ficar irritado. Todavia, recorreu ao bom humor.

— Com álcool não. Os únicos que se alcoolizam aqui são os pacientes que contrabandeiam sua bebida, para dentro do consultório. – e sorriu; Jim também.

— Quem sou eu? – perguntou Morrison a si próprio. Em seguida, retornou a cadeira, assentando-se. Puxou um maço de cigarros do bolso, e dele um cigarro. Acendeu-o. – Eu sou aquele que encara a morte dos segundos, sem contabilizar as horas. A cada minuto em que morro, amo mais a Pam. Amo mais a mim mesmo. Mas… – e suspirou. – não consigo me encaixar nos modelos que me são propostos. A maioria dos padrões sociais não comporta amor. A ideia de que o homem deve ser superado ganha força, quando penso em como somos fracos, frágeis. E o amor nos é a maior força. Alguns confundem essa minha ideologia, sobre o fim inevitável, com uma loucura. Não sou louco. Andar no fio da navalha não significa enlouquecer. Mas loucos caminham no fio dessa mesma navalha, devo dizer; só não sabem porque fazem isso. Eu sei. Sei porque, como disse antes, morro a cada segundo.

Breuer estava com seus olhos congelados. Sua pupila ressecara por demasiado furacão que Jim Morrison era. Normalmente, os pacientes que se acomodavam no divã queixavam-se sobre problemas de caráter emocional. Contudo, não com a intensidade com que Jim gritava seus sentimentos para o mundo.

O cigarro acendido estava na metade. E Breuer, intrigado pelo diálogo com seu paciente, pediu-lhe outro. Jim deu-lhe. E os dois fumaram.

— Reta final. – balbuciou Morrison, soltando fumaça em seguida.

— Como assim reta final, Jim?

— As pessoas enxergam a vida como um conjunto de retas finais. O que é um equívoco para com o acaso, no mínimo.

— Mas você não acha importante ter planos? Ainda mais se esses planos fizerem parte de um sonho; uma vontade em alcançar algo maravilhoso.

— Não tenho ódio pelos planos, mas há poréns sobre eles. Transformamos nossas vidas em retas finais. Mas reta não possuí final, e não enxergo seu início. Essa maneira geométrica de conduzir etapas da vida torna falecido o mais vivo dos vivos. A existência não é uma reta. E enquanto planos tratam de justificar a existência, gasto meus minutos fugindo das justificativas. Amo as palavras. E mesmo que elas não consigam exprimir exatamente o que é amor, percebo que elas apontam a resposta para a mais relevante das perguntas: Quem é você, Jim Morrison? Amor é a resposta.

O relógio, neste momento, tocou um som estridente. Eram cinco horas. Final da sessão.

Os dois cavalheiros cumprimentaram-se, cordialmente. Breuer não disse nada. Nem complementou a sessão dizendo a Jim que voltasse na semana seguinte. Morrison tomou sua jaqueta, colocando-a no ombro. E retirou-se.

Autor: Lucas Vinícius da Rosa