Por detrás do véu negro dos olhos humanos

Inicia-se o conto pela narrativa da prostituta. Ela, como de costume, vestida em sapato de salto alto, vestido colado ao corpo, aderente às formas que a sociedade avidamente adora, com o tecido não mais longo que a altura da metade da perna, era bela; quando dançava, homens casados iam ao delírio; com o mesmo entusiasmo o faziam os jovens solteiros, futuros candidatos ao matrimônio. Seu nome era Daniela.

— Pode me chamar de Dani, querido. Prefiro assim. – ela sussurrava ao ouvido dos clientes.

Carlos, Damião e Henrique eram três amigos desde muito tempo. Conservavam sua amizade não só pelo tempo, no entanto. Havia uma harmonia entre os pecados cometidos pelos três. Eles usavam os ombros amigos como confessionário. Bebiam bastante também. Este vício, longe de ser virtude, configurava-se em outra forma de confissão para eles.

Damião conhecera Daniela numa noite de sexta-feira, quando sua esposa fora viajar, numa excursão esquisita com as amigas do trabalho. Com surpresa, ou nem tanto surpreendente, a mulher de Henrique estava escalada para a mesma viagem. Eram amigas ambas as esposas. Talvez elas também usassem uma a outra como confessionário. O ser humano, por certo, possui uma necessidade muito grande de confissão, tamanha a sua angústia pelos próprios atos.

Enquanto suas mulheres confabulavam sobre suas vidas de casadas, assentadas no ônibus de excursão, Damião e Henrique faziam algo parecido, no bar.

— Mais uma cerveja, por favor Tânia. – chamavam a garçonete pelo nome, dada sua assídua frequência no lugar.

— Claro, queridos.

— E se alguém nesta mesa, – falou Damião, olhando para seus amigos. – exigir uma saideira, não lhe escute. Nós não gostamos disso de última cerveja.

— Sua requisição está anotada, querido. – disse formalmente a garçonete; ela vestia uma calça jeans rasgada no joelho, e seu cabelo estava preso por uma cordinha negra, que se misturava às cores capilares, e mal se percebia. Ela ajeitou o barbante, prendendo mais firmemente o cabelo. E disse. – Trarei a mais gelada das cervejas para vocês. – Eles gesticularam com a cabeça, aquiescendo a moça.

Tomaram doze garrafas de cerveja. Uma dúzia divida em três pessoas. A vida dos três era lentamente mastigada pelo fígado. Enquanto suas futuras doenças hepáticas se desenvolviam, pelo stress de não serem quem realmente queriam, e beber por isso, eles enfim bebiam.

Henrique batia em sua mulher, sempre que chegava bêbado em casa; não raro, com boa periodicidade, ele se achava embriagado. Engraçadamente, no entanto, sua gentileza e educação para com a garçonete não era a mesma para com sua esposa. Damião, cuja esposa era amiga da de Henrique, nunca soubera dessas agressões. Talvez por isso as mulheres viajassem tanto em excursões sem sentido. Era como se a lei Maria da Penha fosse algo fictício, ou uma legislação muito oculta, mal praticada pelas vítimas que deveriam ser defendidas por ela.

Há de se perguntar, no desenvolvimento desta trama, porém, qual o papel real de Carlos e da concubina Daniela. Irei logo desvelar seus essenciais papéis neste texto.

Carlos sugeriu que, contrariamente a ordem que Damião havia emanado para a garçonete, fossem ao posto, tomar a saideira. Foram os três, errantes pela linhas retas das ruas. Deus havia escrito esses seres humanos em linhas tortas; houve, aparentemente, falha na determinação divina.

Assim que chegaram ao posto, recorreram ao freezer. Buscaram-se três cervejas. Três goles simultâneos foram tomados, no lado de fora, ao lado das bombas de combustível. Em meio à perturbação típica da noite, um carro estacionou no posto. Dele, desceu Daniela. Um cliente a despachara ali, não tendo acordado sobre o preço do programa. As rodas cromadas, de alto valor do carro importado, refletiam a mediocridade de seu mau trato com a mulher.

Aos prantos ela desceu. Assim que colocou seu salto alto no chão, Henrique logo viu que conhecia aquela mulher. Damião teve o mesmo lampejo, e foram os dois conversar com Dani. Ou simplesmente a consolar. Naturalmente, havia na mente sádica dos dois intenções sexuais no consolo. Porém, diferentemente do homem do carro importado, eles de fato se importavam com a prostituta. Mais que com suas mulheres.

Daniela os tinha como clientes, já há muito tempo, Damião e Henrique. Introduzira-lhes as práticas sexuais ousadas, as quais as esposas não são solicitadas; homens escrotos não inovam na cama; daí serem repugnantes esses personagens.

As mulheres, no ônibus em viagem, continuavam sua lamúria sobre seus casamentos. Resolveram ir ao frigobar, no fundo do carro de viagem. Pegaram uma garrafa de Martini, escondida abaixo dos copos d’água de plástico. Fizeram dois copos, e beberam. No final do gole, já estavam conformadas com sua realidade, e não retornaram ao assunto da decadência de seus casamentos. Engraçadamente, a prostituta Daniela adorava Martinis também.

Carlos ficou parado no posto, enquanto seus amigos abordavam Daniela. Resolveu, depois, ir até a conveniência e apanhar outra cerveja. Quando olhou para o funcionário do posto, fê-lo profundamente. Carlos, embora também casado, ainda que sua esposa não estivesse viajando, não queria retornar à sua casa. Seu desejo sexual não seria jamais aplacado pela sua mulher, nem mesmo por Daniela. Ele almejava, de fato, contatos em primeiro grau com pessoas do seu sexo. Seus amigos, no entanto, sequer desconfiavam da predileção por homens de Carlos. Ele abordou o homem da conveniência, e os dois se olharam com incômodo. Carlos foi embora. Ali não era seu terreno.

Quando retornou para o lado das bombas, empunhava a cerveja. Parou. E ali ficou, estático. Observando seus amigos se lambuzarem com Daniela. A prostituta poderia ser muito bem alguém que desfaz lares. Todavia, ela mesma tinha também um lar. Sempre que deixava de dar atenção a Damião, ou a Henrique, jamais a Carlos, retornava à sua casa. Cuidava de seu filho. E acariciava-lhe os cabelos, desejando em seu íntimo que seu filho sobrevivesse à vida, tão dura ela pode ser. Depois ia dormir. Antes, todavia, ia ao armário da cozinha, e tomava uma dose de Martini. Ou duas doses. Quiça três, ou o suficiente para adormecer e esquecer o seu dia.

Os três amigos tinham lindos olhos. Mas, longe dessa beleza refletida pela sua íris, eram hipócritas por dentro. Suas bocas falavam coisas diferentes dos seus sentimentos. Um agressor de mulheres, um amigo insosso amante de prostitutas, e um homossexual não assumido compunham uma trama sem final bem definido. Apenas vida e olhos que mentem, encobertos por um fino véu negro, e tão elegantes e mentirosos como podem eles ser: a vida, e os olhares.

Autor: Lucas Vinícius da Rosa