O devorador de livros

Devorador

Nem duas batidas na porta, e lá se vai alguém entrando. Porque assim o são com um filho as ocasiões de visita à casa dos pais, depois de crescido, emancipado e até que esteja morto, sepultado, pregado à sua lápide com epitáfio destacado em letras enferrujadas, meio capengas, com dizeres tristes anunciando que outro cadáver está enterrado no recinto dos penados.

Em residência paterna, assim sendo, você sabido de estar agora em ambiente estranho, desconfiado, em prol de seus momentos íntimos e de suma importância para sobrevivência carnal e espiritual, certifica-se portanto sempre duas vezes. Dessa maneira explica-se como adquiri o sagaz hábito de atentamente ouvir os sons externos, desde as gavetas da cozinha se fechando às vozes da vizinha conversando com minha mãe, solicitando um tempero que lhe falta e é imprescindível ao sabor do prato do dia.

Ah, meu amigo. Porém cuidado redobrado sempre escorre pelo ralo; ora ou outra. E em casa de filho criado e que à casa de pai e mãe torna, não importa o célebre mágico Harry Houdini já ter morrido faz já tempos, nos quartos não se acham trancas suficientes e disso se incorre que tudo é como se estivesse aberto.

Ao passo que todo homem (incluamos aqui ambos os gêneros sexuais, fazendo jus à igualdade que se merece o assunto, de relevante debate à esta atrasada nossa época) padece de suas necessidades hormonais, independente de faixa etária, cultura ou nível de alfabetismo, não cabe estabelecer defesa sobre o que é simplesmente biológico.

Eis que tripliquei meus cuidados. Ericei os ouvidos. Escutei as gavetas, como se pusesse um estetoscópio na porta do quarto; pude quase ouvir a voz de uma vizinha muda pedir por uma salsinha e as duas gavetas, na cozinha, dantes abertas sendo fechadas.

Tudo em sua absoluta normalidade, segundo diagnósticos anteriores. Circunstâncias adequadas às minhas glândulas seminais que, neste instante, já apontavam ao meu pensamento numa conversa deverás biológica-consciente: “e aí campeão, hoje você vai de asiática? Quem sabe um gatinha da Escandinávia, para mandar um gelo nórdico para esses Países Baixos. Já estou cansada da mesmice “aí, que delícia” brasileira. Ou é aquele lenga-lenga de apertar a barra de espaço e travar tudo, como se fosse o desgraçado, miserável e comicamente previsível — para, para, para, olha o que ele está fazendo com a sua mulher, bicho! — do Teste de Fidelidade, ou uma prostituta a quem se deve a todo instante mandar calar, tal qual uma boneca que se dá corda e depois tem de se lhe retirar as pilhas. E a aquela senhora MILF da Guiana Francesa ou Suriname, top 5 daquele site da DeepWeb, que faz o truque com o charuto cubano, hein?”

Sentei-me na cama. Ao lado tinha uma cadeira, sobre onde havia alguns livros e o último deles estava aberto. Fechei-o e transferi todo o material para um bidê, atrás da cadeira. Vazia, a cadeira trouxe-a para próximo de mim, de modo que, com o computador notebook em cima dela, eu pudesse manuseá-lo satisfatoriamente o conteúdo que nele transcorresse.

A Internet fluía como uma ave de rapina. Todavia os segundos eram preciosos naquela situação. Afinal, por outro lado, se um homem está em sua própria casa, as portas ele escancara, um som alto na televisão coloca, prática seu “cabanheta” (observando estritamente esta ordem, por obséquio das normas higiênicas ou, se não por isso, ao menos pelo bom senso e decência mínima humana) e ainda comemora o gol do seu time, cujo jogo acompanha pelo celular com os braços esticados, sem se entristecer com o fato de se há ou não papel higiênico no banheiro, já que pode simplesmente levantar-se nu e tomar um banho com o box aberto logo após. Mas retornemos ao quarto.

Play no vídeo, com a mão trocada, a esquerda (tendo-se sempre a hipótese da higiene em mãos; não retornemos aos tempos da Idade Média!). Um pequeno círculo de espera surge no meio da tela, e logo some. Lá vem a soberba, estonteante, em alta definição morena mulher com seu sotaque latino e um charuto cubano entre as coxas. Então, nem duas batidas na porta. E lá vem ele entrando. Meu pai. “Não é possível, pelas barbas do profeta!”, gritei mentalmente. Baixei a tampa do computador, que como toda tecnologia super-moderna, demora seus segundos para hibernar e finalmente adormecer no inferno. Enquanto ele, e ela, não silenciava, eu alardeava:

— Pai, ô, pai. – e já logo apanhei o livro que se achava mais acima, no bidê. – Você não vai acreditar. – e a mulher ainda gemia com o charuto, ou era o charuto que assoprava e fazia certo ruído cavernoso, cof, cof, abafado…era tudo muito confundível àquele instante. – Este tal de Goethe era um poeta muito sábio, pai! – a figura paterna me olhou de forma desinteressada, e eu folhei uma página do livro, demonstrando um abundante, porém infausto entusiasmo. Até que finalmente o sotaque surinamense, ou seja lá de onde viera aquela voz não mais tão sedutora, cessou.

— É, eu só preciso verificar o trinco do, – dizia-me em tom calmo, mas como quem urge em consertar algo para ontem. – armário.

— Do armário? – perguntei eu.

— É. – ele apontou. – Veja, está quebrado. Será que a outra peça não está por aqui. – e insistia, enquanto caminhava pelo quarto. – Você não a viu?

— A outra peça?

Eu sequer havia notado que um maldito trinco do armário estava, como melhor poder-se-ia colocar que desta forma: trincado! E o obstinado consertador de armários tinha em seu interior a essência de Sherlock. Vasculhou o quarto. Levantou algo aqui. Outra coisa acolá. Abriu uma gaveta ali. Arriscou sua imaginação noutro lugar. Até que desistiu.

— Realmente, vou ter que tirar o outro trinco. – e concluiu. – É a única opção para que se mantenha a simetria do móvel; ou para que substitua depois por um par de trincos iguais.

— Hum. – e eu folheava o livro de forma audível, ruidosa. Plaft! Nunca havia passado tantas páginas de um livro em tão pouco tempo. Plaft! – Parece uma ótima decisão, pai. – e neste instante meus pulmões já se congestionavam com a fumaça do charuto cubano. E eu pensava em me tornar Al Pacino, mandar um What’sApp para Brian de Palma, e viajar para os Estados Unidos como um personagem imigrante com cicatriz na face, tornando-me o Rei da Cocaína: “Say hello to my little friend!”

Al Pacino no papel de Tony Montana, em Scarface (1983)
Al Pacino no papel de Tony Montana, em Scarface (1983)

Em três minutos o trinco fora removido do armário. Mas minhas glândulas, meu Eu, e minha alma já não eram os mesmos; “Ideologia, eu quero uma pra viver.”, cantarolei em voz baixíssima, desiludido. Olhei para o computador com sua tampa fechada. Minhas necessidades biológicas não saciadas simplesmente tinham desaparecido, como um cão se esquece de demarcar seu território, ao passar por um meio-fio sem nem abanar seu rabo. Ou como uma inspiração que se vai embora para longe, e no meio do deserto emagrece de sede, ou se encontra um camelo, assim, no nada, desiste de perguntá-lo onde há água, porque sabe que não há mais o porquê se hidratar e viver na míngua que tornou-se a sua existência.

Então, achava-me ali eu, trancafiado, mas sem chaves, no quarto. Já sem os medos que um susto outro poderia me trazer, pela aparição de um fantasma paterno ou materno.

Encarei o armário, e o trinco que já não estava mais ali. Repudiei os criadores de portas e trincos. Toda a cadeia logística que os criara. Malditos! Pensei na quantidade de cérebros cujo intelecto a outro propósito serviria à sociedade, se trincos nem portas existissem; salários e tributações inexistentes, acidentes de trabalhos impossíveis, cupins sem seu ambiente fértil para reprodução, o tétano em volume inferior de indivíduos vacilantes e menos vacinas espetando menos braços. Sobretudo, se trincos e portas não houvesse, eu não precisaria ser um devorador de livros.

Autor: Lucas Vinícius da Rosa