Diabetes mellitus

O piso da farmácia era esbranquiçado, e muito polido. Também gelado. As prateleiras, que possuíam a mesma tonalidade do chão, estendiam-se altas e compridas, até um balcão de madeira bastante fina, provavelmente importada. Havia muito luxo no lugar. As cortinas tinham costuras detalhadas, e ocultavam a luz que vinha do sol. O branco, ali onipresente, por si só, respondia pela integral iluminação do recinto.

Sustentando um sorriso de dentes demasiado brancos, Vitória, farmacêutica e proprietária da rede Farmácias da Solidariedade, revisava algumas caixas que continham doses de insulina. Uma a uma, ajustava-as nas prateleiras atrás do balcão.

Era horário de almoço. E estava sozinha. Solidariamente dispensara seus funcionários no restante daquele dia, visto o baixo número de clientes esperado. Sentia-se bem consigo mesma. Havia feito sua benfeitoria diária, como lhe ensinara uma esmerada educação obtida no colégio Madre Teresa de Calcutá, restrito à gente rica da cidade.

Próximo às treze horas, uma senhora adentrou a farmácia. Suava muito, e suas roupas contrastavam significativamente com o branco irradiado por todos os lados. Vestia uma saia longa, um pouco escura, ainda que demonstrasse certa sujeira em alguns pontos. Na parte superior, um casaquinho florido apertava seus braços rechonchudos, comprimindo sua circulação; aquela veste não lhe pertencia; talvez a tivesse obtido por esmola ou simplesmente doação.

A mulher caminhou até o balcão. Aproximou-se de Vitória.

— A senhora tem insulina? – perguntou. Vitória fitou a mulher da cabeça aos pés, como se de alguma maneira ela fosse inadequada ao lugar.

— Tenho sim. Quantas caixas você quer?

— Uma só.

— Você tem a receita? – disse Vitória, enquanto apanhava uma caixa da substância e a colocava sobre o balcão.

— Não, senhora.

— Sem a receita eu não posso vender.

— Mas… – e a mulher encarou a preciosa caixa posta em sua frente. – Meu filho tá sem insulina tem muito tempo já, senhora. E não tenho condição de ir num médico. No posto de saúde não fui atendida. Não sei mais o que fazer.

Neste instante, uma lágrima escorreu pelo rosto da mulher. Assim que pingou pelo queixo, caiu sobre o botão de uma das flores da estampa de seu casaquinho. Contrariamente ao que demanda a natureza, contudo, a flor murchou. Lágrimas desesperadas não provocam florescimento.

— Sem receita, não vendo. – repetiu.

Diante da irredutibilidade de Vitória, a mulher tomou uma atitude arriscada. Pensava em seu filho; os calafrios que sentia em razão do excesso de açúcar no sangue. Se pudesse, trocaria suas células com as dele, tamanha é a dor de uma mãe diante do sofrimento de um filho. Ergueu seu braço direito e, rapidamente, apanhou a insulina.

Todavia, nesse lance, Vitória fora mais ligeira. Antecipou-se à tentativa de roubo. Agarrou o braço da mulher com força, fazendo entrar no braço agarrado suas garras de punição.

— Você está tentando me roubar, sua sem vergonha?! – e a mulher chacoalhava o braço. Puxava-o, embora em vão. – Vou chamar a polícia! Lugar de ladra é na cadeia!

— Não…por favor…meu filho precisa…

Com a outra mão, livre, Vitória segurou-lhe os cabelos. Gritos ouviam-se da rua. E à medida que a mulher era arrastada para trás da farmácia, os berros encolerizados eram abafados, até que sumiram.

Em pouco tempo, a polícia encontrava-se na filial das Farmácias da Solidariedade. Indignada com o que lhe ocorrera, Vitória assistia à prisão da mulher que tentou furtar uma insulina para seu filho. Julgava tal ato uma ação de causa absurda. Compreendia as consequências a que uma mãe se dispõe, em se tratando daquele que germinou dentro de si. Mas roubar, isso era demais.

Quando os policias retiraram-se, Vitória tratou de passar um pano no balcão, e igualmente o fez no piso: a mulher deixara, em algumas partes, rastros de sua sujeira e suor materno. Finda a limpeza, sua consciência moral sentiu-se pura e limpa como o branco da farmácia.

Trinta minutos para às dezoito horas, o telefone tocou. Era padre Bento, diretor do Madre Teresa de Calcutá. Algo muito grave envolvendo a filha de Vitória havia acontecido. O diretor não quis fornecer maiores detalhes pelo telefone. Apenas solicitou que Vitória comparecesse o quanto antes no colégio.

Dado que liberara seus funcionários, resolveu fechar a farmácia mais cedo. Passou a chave na porta. Certificou-se, todavia, três vezes que ela estava fechada. Queria evitar dois ladrões em um mesmo dia.

No colégio, Vitória tomou um atalho, antes de ir ter com o diretor. Era amiga da enfermeira-chefe do Madre Teresa, Paulina, fazia longo tempo. E decidiu passar na enfermaria contar-lhe o que se passara na farmácia, horas antes.

Uma queixou-se sobre o roubo; a outra, sobre a deficiência de suprimentos básicos na enfermaria, assim como acerca do descaso da diretoria para com a saúde dos alunos. Minutos depois, despediram-se amigamente, e Vitória dirigiu-se à sala do diretor.

Não precisou bater, a porta já estava aberta. Assim que avistou a figura de Vitória, padre Bento pediu com educação que entrasse. A farmacêutica se assentou. Porém, não sem antes escolher a mais limpa entre duas cadeiras à disposição. Vestia branco. E não queria manchar-se.

— Olá, Vitória. Como tem passado?

— Gostaria de dizer que bem, padre Bento. Mas falemos sobre minha filha, por favor. – o diretor levantou-se. Foi até a porta. Fechou-a, com cuidado. Em seguida, retornou à sua poltrona, detrás de uma linda mesa de marfim.

— Muito bem, Vitória. Sua filha, Joana, sempre teve um comportamento exemplar. Mas, como você bem sabe, este é, sobretudo, um colégio que prega a boa moral e educação…

— Claro, padre Bento. Estudei aqui, e fiz questão que Joaninha também estudasse no Madre Teresa.

— …sei que é difícil ouvir isso, mas sua filha foi flagrada roubando de uma coleguinha.

— Roubando?!

Diante da notícia, Vitória transfigurou-se. Seu rosto tornou-se rijo, e sua feição implacável. Jamais toleraria que tamanha calúnia fosse levantada contra seu anjinho, Joana.

— O que o senhor está me dizendo, padre Bento? Está chamando a minha filha de ladra?

— Não é bem assim, Vitória. – e ajeitou-se na cadeira, desconcertado. – Fui seu professor desde muito pequena. E praticamente tenho visto a Joana crescer. Mas uma professora presenciou o ato. Talvez se você conversasse com a sua filha e…

— Que disparate! Filha minha não rouba! Nem aos olhos dos homens, nem sob os de Deus. Se o senhor dúvida disso, ainda que eu não queria, talvez seja melhor eu tirar a Joana daqui.

— Não! Que isso, Vitória. Você é um dos pais mais “ativos” no desenvolvimento do Madre Teresa.

— Exatamente! – e uma pausa constrangedora se firmou entre os dois. Até que a mãe de Joana acalmou-se. – Padre Bento, talvez possamos resolver esse mal-entendido de outra forma. – e o diretor eriçou os ouvidos. – Fiquei sabendo que o departamento de enfermaria está carente de muitas coisas. Em conversa com a enfermeira Paulina, ela me disse que faltam insulina, seringas, curativos, anti-inflamatórios, analgésicos. Quem sabe as Farmácias da Solidariedade possam fazer algo a respeito.

O diretor animou-se, de imediato. Vitória sempre fora uma estimada contribuinte à educação das crianças do Madre Teresa de Calcutá. Sorrindo, ele balbuciou.

— Seria muita bondade da sua parte nos ajudar, Vitória. – e a mulher igualmente sorriu, escancarando seus dentes brancos. – E quanto a Joana, acredito que tenha sido realmente um mal-entendido, como bem colocado por você. Falarei com a mãe da outra criança.

Trocaram uma ou outra palavra política durante algum tempo. Não muito, entretanto. Depois, despediram-se.

Assim que deixou as imediações do colégio, começou a chover, muito forte. Preocupada com a sua roupa branca, que molhada atraía mais sujeira que o comum, Joana correu até seu carro. Quando engatou a primeira marcha, já havia esquecido da ladra de insulinas e do crime de sua filha. Sequer sentia-se tonta; há pouco açúcar no sangue dos hipócritas.

Autor: Lucas Vinícius da Rosa