Desencontro materno

Passeavam ambos, homem e mulher, de mãos atadas e dedos entrelaçados; faziam-no em passo vagaroso, sem ocuparem suas mentes com seus problemas cor de trevas negras, ou aparentemente insolúveis. Pelo contrário, aquela caminhada parecia ser uma terapia para as cabeças, ou corpos, mais problemáticos. Andavam em círculos. Sentiam, na superfície da pele, um frio calmo, provavelmente oriundo das grandes tubulações de ar condicionado. Muitos espelhos os cercavam, alguns mais translúcidos que outros.

As vitrines do shopping center ilustravam produtos brilhantes, polidos, com faces de novidade. A mulher deteve-se numa delas. O marido, distraído por qualquer motivo, obedeceu à puxada de mão recebida. Logo entendeu.

— Você quer entrar nesta loja, querida?

Era uma vitrine de sapatos e joalherias, das mais caras já produzidas por mãos humanas. Ilustrava itens semelhantes aos que vestia a mulher. Alguns deles presentes de seu marido, oferecidos em dias especiais; outros, concedidos a ela por si própria, em situações comuns. Ela fez que sim, com a cabeça, e entrou na loja, sem importar-se deverás se ele havia lhe escutado ou não.

— Tudo bem. Então vou buscar algo para comer na praça de alimentação. Faz tempo que almoçam… – disse o homem. Porém, percebendo a esquiva da esposa, tomou seu rumo. O que demais poderia acontecer, afinal?

Logo, uma vendedora aproximou-se de sua potencial cliente. Já havia, assim que a mulher adentrou o lugar, lançado-lhe um exame de olhos minucioso. Analisara suas roupas e estampas. Seu jeito de andar. A conduta em carregar a bolsa, cujas inscrições num rótulo de um compartimento externo indicavam marca de primeira linha. Eram estes vestígios de vendas e comissões.

— Posso lhe ajudar? – disse, em voz baixa.

— Por enquanto, não. Obrigada. – respondeu a mulher, em seguida voltando as costas para sua interlocutora.

Seus olhos percorriam as bolsas, os sapatos, as joias. Todas muito extravagantes, oriundas de regiões remotas de países africanos. Sonhos ou desejos de qualquer mulher. Ela, no entanto, deixara de sonhar com tais coisas há muito tempo. Não apenas por que já as tivesse em grande número, tendo abarrotado seu guarda-roupa com mais do mesmo, todavia sim porque algo mais humano, e significativo, e profundo, lhe faltava.

Na fila do restaurante fast-food, o homem aguardava sua vez. A fila fora grande. Porém, como se faz oportuna a velocidade de atendimento nesses lugares, em pouco tempo se reduzira. Ele estava prestes a ser atendido, antecipado apenas por uma senhora. Quando um dos funcionários, cujo rosto escorria, pela beirada do boné, suor após uma extensa jornada de trabalho, ou pelo calor das fornalhas, escondidas na parte de trás do balcão, informou.

— A assadeira queimou.

— Como assim? – perguntou irritada a senhora da primeira colocação da fila, que pela idade deveria exibir o respeito que solicitam os velhos. – Estou aqui há horas. – na verdade a ampulheta da velhice parece contar mais rápido que a da juventude. O que traz a conclusão de que as horas da senhora eram, em verdade, os minutos do homem atrás dela. – Você sabe quanto tempo estou esperando? E que idade tenho?

— Peço desculpa, senhora. – retificou-se o atendente, que possuía não mais que 17 anos.

O homem pensou em repreender. Senhoras de idade não deveriam comer fast-food, em primeiro lugar. Em segundo, os seres humanos não devem assumir a culpa pelo fracasso das máquinas. Salvo quando a pessoa usuária é precisamente quem as projetou. No entanto, a velha ralhava. Sapateava, com seu tamanco de salto muito baixo.

— Tenha mais respeito com os mais velhos, ouviu!

— Minha senhora, eu lhe tenho muito respeito sim. E saiba que a assadeira quebrou pela primeira vez hoje. Não posso ser culpado por isso. Estou aqui apenas fazendo meu trabalho. Sou pai, e preciso sustentar meu filho. – respondeu o atendente. O homem, diante daquilo, sentiu irradiada nele uma paternidade que não ainda possuía.

Desinteressada pelo que via, a mulher, em pouco tempo, saiu da loja. Com o olhar errante, assim como seus pés, pôs-se a caminhar. Ainda não havia se perguntado sobre o paradeiro de seu marido.

Após noventa graus de giro, parou. Suas narinas foram invadidas por um cheiro de criança, de apetrechos e vestes infantis. Na vitrine, manequins de crianças vestiam roupas encantadoras. Um com macacão azul, e uma camiseta cuja estampa trazia um personagem de desenho animado. Outra, com vestidinho rosa, com babado branco perfurado nas pontas. De repente, distraída, ou melhor colocando, muito concentrada no que via, foi despertada por uma pequena mão lhe puxando a blusa.

— Você viu minha mãe? – a pequena garota disse, com os olhos esbugalhados, recheados de choro.

— Sua mãe?

— É…. – e a criança fez o gesto com a mão, esticando até onde podia. – ela é desse tamanho assim, ó!

A mulher estremeceu. Compadeceu-se. Em princípio, repudiou a irresponsabilidade da mãe perante este ser tão sereno e magnífico. Depois, foi seduzida pelo deleite encantador das crianças.

— Me dê sua mão, meu anjo. – disse-lhe, com calma na voz. – Iremos encontrar sua mãe. Não se preocupe. Qual é o seu nome?

— Joana.

— Joana é um nome muito bonito. – e olhou para os lados. A mulher não sabia o que fazer, senão ser mãe por alguns instantes, mais do que talvez poderia ser durante toda sua vida.

Na praça de alimentação, dada a situação desagradável da fila, a fome de súbito diminuiu no estômago do homem. Abandou, portanto, a senhora com o atendente, e voltou até a joalheria.

— Oi. – disse o homem.

— Pois não. – respondeu a atendente da joalheria.

— Você por acaso não viu uma mulher loira, de estatura mediana, com uma blusa rosa, por aqui?

— Sua esposa?

— Como você sabe?

— Vi vocês dois há alguns minutos, em frente à loja. Ela entrou. Você saiu. E depois ela saiu.

— Então ela foi embora? – disse o homem.

— Isso. – e apontou uma direção hipotética, para onde a mulher poderia ter ido.

Sem indagar se há pouco a mulher partira, ele seguiu seu instinto. Não fê-lo por muito tempo, porém. A cinco metros de distância, identificou sua mulher, em frente a uma loja para crianças. Ela gesticulava, tendo uma linda menina, de uns oito anos de idade, ao lado. Argumentava, colérica e indignada, com outra mulher, que puxava os cabelos da criança de maneira asquerosa.

O homem aproximou-se das três. Até que pode ouvir a discussão que se desenrolava, com temperatura mais acirrada que o próprio ambiente do shopping.

— Não é culpa dela se você a perdeu. – dizia a mulher. – Não a trate assim.

— Mãããe, foi sem querer. – justificava-se a criança, com uma das orelhas enganchada na unha da mãe.

— Está vendo o que você fez! – dirigia-se à criança, depois à mulher. – Agradeço ter tomado conta desta pirralha para mim. Mas não me diga como educar minha filha.

— Educar? Você chama isso, puxar pelos cabelos uma criança ingênua que se perdeu, de educação? – retrucou a mulher.

Já assistindo à cena de muito perto, o homem escutava nitidamente. E entendia a ocorrência com igual clareza.

— Você é mãe?! – levantava o dedo indicador com a mão livre, enquanto, com a outra, não demonstrava menos rígida para com sua filha.

A mulher silenciou-se, atordoada. Sentiu o mundo cair sobre seus ombros, depois sobre seu corpo inteiro. Tinha tanta maternidade dentro de si, em vigor tão intenso, que sofreu profundamente com a pergunta. Padeceu como se facas muito pontiagudas fossem encravadas em seu útero.

O homem interpôs-se. E abraçou sua mulher.

— Vamos, querida. Você não precisa escutar isso! – e já nesse momento puxou a mulher para si, visando distanciar-se. A mulher abraçou-lhe com um dos braços, e aos prantos lhe acompanhou. Não, todavia, sem antes despedir-se.

— Joana, meu anjo, adorei lhe conhecer. Você é uma criança especial.

A pequena garota estancou o choro, por um momento. Sua mãe surpreendeu-se. Não sem dissimular o espanto inevitável, obviamente. Jamais desceria de seu pedestal implacável, em que adultos preponderam com grosseiras sobre as crianças, julgando serem mais crescidos, quando realisticamente não o são.

Cada um foi para seu lado. A mulher, limpando as lágrimas, olhou ainda outra vez para trás. Joana não estava mais lá.

O casal dirigiu-se até o estacionamento do shopping. Não deram palavra alguma sobre o que acontecera; sentiam em seu íntimo um diálogo mudo, mas que, entretanto, fazia-lhes entenderem-se mutuamente. Tanto enquanto desciam as escadas rolantes, como quando entraram no veículo, um clima fúnebre lhes recaíra sobre as faces.

Finalmente, antes de acionar a ignição do carro, o homem voltou-se à sua mulher. Tirou a mão da caixa trocadora de marchas. Limpou a maquiagem borrada da esposa. Fez-lhe uma carícia não de consolo, mas de compreensão. Eis que, embora fossem patronos de grandes quantias financeiras, e inestimáveis anéis de ouro estivessem em seus dedos, ou pingentes diamantinos em seus colares, não tinham a mais suprema felicidade deste mundo – um filho. E então ele disse-lhe calorosamente, como se necessário fosse despojar-se de todo seu patrimônio para tal, assim o faria.

— Não se preocupe querida. Viajaremos logo para os Estados Unidos. – e pousou a mão sobre o ventre da esposa, que colocou a sua, em seguida, sobre a dele. – Tentaremos outro tratamento, com os melhores especialistas do mundo. Tudo dará certo, afinal, você já é uma ótima mãe.

Autor: Lucas Vinícius da Rosa