A crônica abaixo faz menção a outros dois textos, nomeadamente o conto A imolação síria e a crônica Gabriela; além disso, o autor adverte que seu intuito foi tirar sarro de si mesmo, e de suas pífias criações.
Quase escurecia, quando ele abriu a porta de casa, em direção à rua. Um sol escaldante, apesar do confronto fatídico com o crepúsculo, emanava seus últimos raios cálidos. À medida que atingiam sua testa, faziam-na exprimir gotículas de suor. Que dia deverás quente, quase maltratante. Resolveu, mudando de ideia, voltar para a parte interna da casa, a fim de tomar um copo d’água.
Água não havia, porém; escolheu uma cerveja no lugar. Enquanto saía de casa, e tomando um protuberante gole da latinha apanhada, foi surpreendido. Repentinamente, surgiram em sua frente dois misteriosos indivíduos. Antes que pudesse gravar a imagem de ambos, no entanto, foi alvejado por um soco na boca do estômago; em seguida um tranco na nuca. Apagou e, enquanto desmaiava, dado que seus pés eram arrastados pelo chão, notou ser conduzido para outro lugar.
Não menos que três horas depois, acordou, atônito. Suas mãos estavam amarradas, atadas por uma corda muito rústica, conquanto tivesse força de algemas. Os olhos nada enxergavam; sua visão era ofuscada por um capuz preto. No momento em que se mexeu, sussurros de sotaque muito estranho foram ouvidos.
“O que está acontecendo?”, balbuciou. O burburinho cessou, acompanhado de um seguinte silêncio.
Começaria a gritar, não tivesse seu ímpeto interrompido. Removeram o capuz que envolvia sua cabeça. Uma vela de luz muito tênue alumiava o ambiente. Queimava o pavio aceleradamente, derretendo a parafina em ritmo anormal. Ainda assim, ele pôde identificar seus sequestradores. Não conteve-se; quis rir; e riu.
“Ei…eu conheço vocês”. Os homens abriram um sorriso sarcástico, tal qual fosse essa uma dedução demasiado óbvia. Aquelas faces de contornos árabes, mais precisamente persas, denunciavam sua origem de pronto.
“Nós também o conhecemos. E muito bem.”, disseram.
“Ahmed e Abu?”
“Sim”, responderam uníssonos, no que fecharam imediatamente seus semblantes. “E você é Lucas Vinícius da Rosa, o desgraçado que nos criou.”
Lucas resignou-se, confuso. Não fazia sentido seus personagens surgirem assim, de súbito, e lhe raptarem. Franziu a testa, e mordeu o canto esquerdo da boca.
“Hum…não sei o que falar. Quer dizer, é uma prazer conhecê-los pessoalmente. Eu acho. Meio estranha essa situação, não?”, disse o criador dos caracteres, ironicamente.
“Cadê o Hanin?!”, bradou o impaciente Abu.
“Como assim? Hanin faleceu no terceiro capítulo do conto A imolação síria, ora essa.”, Lucas justificou-se.
“Sim. Você matou ele. Agora, em nome do Exército Sírio Livre, ordenamos que você o ressuscite.”, e engatilharam suas metralhadoras, que antes repousavam nos ombros dos militantes.
“Calma, calma pessoal.”, Lucas afastou sua cabeça para o lado, esquivando-se da mira das armas. “Ressuscitar alguém assim, do nada, é complicado. Mesmo para uma cabeça maluca como a minha. Aliás, se bem me recordo, vocês estavam em Damasco a última vez em que os vi, ou os escrevi.”
“Nós escapamos, seu autor de fundo de sala de aula.”, falou Abu, assumindo sua opinião e a de Ahmed. Lucas rebaixou os olhos, pensativo. Uma fuga de personagens sem seu consentimento lhe perturbava a razão.
“Posso saber como vocês escaparam?”
“O ex-mediador da ONU e da Liga Árabe, Kofi Annan, nos ajudou. Conseguimos, com muito esforço, fugir pela fronteira com o Líbano,” explicava Ahmed, “mas fomos perseguidos por cinco quilômetros pelos desgraçados do Hezbollah. Eles são como ratos do deserto…”
“Bem feito!”, interrompeu o autor. “Se tivessem aguardado mais um capítulo, eu tinha tirado vocês de lá em segurança. Quem sabe camuflados como turistas em uma avião da Fly Emirates. Primeira classe, hein rapaziada? Melhor impossível! Prometo que faço isso no próximo capítulo. Agora podem me soltar.”
“Alto lá, autor imperativo. Você já falou, ou escreveu, muito. Quem dá as ordenas agora somos nós.”, outorgou Abu, desferindo um golpe com a parte traseira da metralhadora, direto no rosto de Lucas. Um pouco de sangue escorreu pela bochecha direita do autor.
Enquanto conversavam, a vela queimava milímetro à milímetro. Na sua base, formara-se um sólido lago de parafina. Havia, talvez, mais uns cinco minutos de vida para a chama, que já estava mais pra lá do que pra cá, na terra dos vivos ardentes.
Lucas, prevendo a escassez iminente da luz, procurou assimilar cada aspecto do ambiente. As paredes não tinham tinta. Eram rústicas e mal acabadas. As dimensões eram curtas, e o teto não muito alto. Aquilo deu-lhe um lampejo. Aquele era o sótão da sua casa.
“Mas que personagens mais sem ousadia eu fui criar.”, lamentou-se. E levou outra pancada no crânio. Exprimiu certa dor, contudo, sendo o autor mais ousado que seus personagens, gargalhou com sangue entre os dentes.
“Você acha que tudo não passa de uma brincadeira, não é mesmo?”, disse Abu. “Pois bem, você verá como são realmente as coisas na ficção.”, e fez um sinal para Ahmed, indicando que ele trouxesse mais alguém para junto deles.
Um minuto após, entraram no sótão uma mulher e um homem, ambos encapuzados. Lucas sentiu um formigamento, desejando rir novamente. Abu e Ahmed estavam exagerando com os capuzes. Qualquer idiota conheceria o paradeiro do próprio sótão de casa.
Os dois integrantes do Exército Sírio Livre posicionaram os outros sequestrados no centro do recinto, mas ao lado de Lucas. Assim que tiveram as vendagens subtraídas, o autor percebeu seu coração arrebatar suas artérias. A coisa era mais séria do que imaginava.
“Ou você devolve o Hanin, ou os dois…”, anunciou Ahmed, fazendo um gesto de pescoço sendo cortado por uma faca. Abu aderiu à mímica conjuntamente, porém meneando a cabeça como se a mesma tivesse sido picotada por uma machado. Que cena grotesca. Os dois personagens estavam descontrolados.
“Ah, só podem estar de sacanagem!”, Lucas bradou. “Pegaram o Armindo e a Gabriela? Porra, não basta fugir do Oriente Médio, ainda tem que raptar meu parceiro de escrita e mais uma personagem? A Gabriela mesma eu nem cheguei a conhecer pessoalmente, seus patifes.”
Ahmed e Abu mantiveram-se sérios. Ignoravam todas as palavras de Lucas. Sustentavam-se incólumes em prol da sua nova causa, a ressurreição de Hanin. Mal sabiam que o que padecera pela revolução síria não tinha volta.
Um fogo pouquíssimo ardente irradiava de um pavio quase inexistente. Era a luz artificial que dizia adeus, como despediu-se em raios fúlgidos o sol, quando do instante do sequestro. Restavam não mais que cinquenta segundos de chama.
Lucas virou para sua direita, em direção à Gabriela. Preocupou-se com sua musa oriental. Chamou-lhe. Ela nada respondeu. Tomou mais um tempo, admirando-a. Ah, Gabriela. Nem mesmo houve tempo de conhecerem-se. Que gafe literária.
Quanto a Armindo, Lucas não se perturbou. Seu velho amigo havia servido implacáveis anos nas selvas vietnamitas, época em que seu fuzil disparava certeiramente em tampinhas de garrafa, distantes treze quilômetros no horizonte. Ele ficaria bem. Um sequestrinho qualquer, para seu parceiro do Palavreado, não representava hostilidade maior.
“Está bem! Está bem!”, berrou Lucas, cuspindo sua goela, e um pouco de sangue. “Soltem a Gabi. Ela não tem nada a ver com isso. Eu ressuscito o garoto Hanin.”
“Ei!”, interpelou Armindo, o herói do Vietnã, acordando de um estado de inatividade. Ainda sob efeito da vertigem, forçou suas cordas vocais, balbuciando algumas palavras. “E eu?”
Antes que a cena prosseguisse, entretanto, a vela finalmente se apagou; não pelo término do pavio, mas por um sopro misterioso, praticamente externo à cena.
“Lucas, meu filho.”, e passou a mão em frente aos olhos do jovem.
“Oi”, ele retrucou.
“Tava no mundo da lua no próprio aniversário, meu filho? Não vai cortar o bolo?”