Pai passado, filho presente

Mockingbird
Eminem – Mockingbird

Meu querido filho,

posso, em quaisquer circunstâncias cabíveis aos seus tropeços e saltos, ver você chorando por esses olhinhos esbugalhados. Não importa se num futuro mudo, em que se escuta não mais a minha voz, senão a sua. Mesmo morto, sinto como pai o quanto a terra dos vivos pode sufocar.

Toda a deficiência do mundo a vejo oposta em cada movimento seu. Sei que não pude lhe dar a educação necessária para vencer o mundo, apenas aquela suficiente para que se vença a si mesmo — em todos os dias de tristeza, em todos os minutos de alegria.

Quando seus joelhos rasgarem-se no asfalto, em brincadeira já não mais infantil, lembre-se do que lhe digo nesta carta: muita coisa irá machucar, como estacas em seu coração — e você não irá permanecer firme nessas ocasiões. Irá gritar, espernear, sentir febre e vomitar. E isso irá constituir, após, superado o trauma quase absoluto, seu sorriso mais genuíno. E eu falarei através de seus dentes, que fazem riso junto a mim, mesmo postumamente.

Perdoa-me. Não pude lhe colocar o dinheiro do lanche no bolso; não mais. Contudo ensinei-lhe a não invejar com o estômago alheio. Sinta sua fome sozinho. E quando saciá-la, mesmo que parcialmente, não torça o nariz; compartilhe seu pouco que suja o prato e sorria junto. Ninguém falece quando coloca um pouco de si em órgão alheio. Esconda um pouco do frango em seu bolso, no entanto, se houver alguma epidemia de caça às galinhas. Estou morto, sepultado, mas sou um defunto demasiado sábio.

Além de todos esses conselhos, a esta altura, em que é lida esta carta, seja você instância própria e original. Seja diferente de mim e de tudo aquilo que não é você. Lembra-se daquele papagaio que compramos? Quando prometi quebrá-lo o pescoço se ele não cantasse? Pois jamais seja um papagaio. Não deixe que lhe ameacem o pescoço ou lhe cortem as asas. Sequer permita-se repetir o que todos já têm feito: viver sem questionar o alcance do voo.

Sobretudo, seja um filho único em seus desgostos, suas angústias, e sob as porradas da vida que irão arrancar-lhe a raiva e o ódio (serão suas maiores batalhas). Assim, então, você, meu querido filho, estará pronto para amar em qualquer inferno em que estiver.

Encarecidamente,

Seu pai, paternidade que pouquíssimo aprendeu na vida, e ainda assim busca, do fundo, as alturas lhe ensinar.

(XX – XX – XXXX)

Autor: Lucas Vinícius da Rosa