Os ossos quebrados

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Havia dentro de mim a sensação de sentimentos quebrados como se meus ossos estivessem assim. Tal qual uma faca houvesse sido cravada no fêmur direito. Eu mancava, na direção dela, arrastando a perna, sentindo o seu peso e a sua carne vivos como nunca.

Seu rosto era tão doce, que contrapunha a dor imensa em ter os membros feridos. Assustava-me a ideia de, sem que acidente algum tivesse ocorrido, eu sofresse internamente todas as consequências de uma bruta colisão. Porque a existência me soava vazia. E os sonhos que todas as bocas cheias de dentes da opinião pública pintavam nos quadros eram apenas borrões na minha tela, porque eu não era um Picasso ou um Da Vinci, a transformar as falhas alheias no preenchimento das minhas faltas. Por isso, talvez, eu me sentisse acidentado; com os ossos arrebentados.

Enquanto ia ao seu encontro, porque seu cheiro sempre me atraía, sua doçura e seus braços suaves me faziam esquecer da incompletude, eram a ilusão curta e necessária, cessei o passo. Lembrei-me das radiografias dos ossos, que indicavam pontos de quebra em variadas regiões. Levariam muito mais que uma vida para se curar. Uma calcificação cuja matéria-prima apenas minha própria pele poderia extrair dos raios solares. Pensei se deveria contá-la sobre o diagnóstico.

Olhei pela janela. Casais passeavam pela calçada. Dissimulavam não mancar. Mas eu sabia que arrastavam suas pernas. Uns a direita; outros, a esquerda. Havia mesmo quem desejasse andar de cadeira de rodas, todavia selava os lábios, ou ainda sorria para as fotografias. Optei pela mudez, e debrucei-me em seus braços.

O tempo passou e, como demanda a tradição, os abraços sumiram, porque sempre se trocam as figuras abraçadas. Os álbuns se preenchem por fotografias, afinal; e num dado instante eu não pude mais sorrir para a lente da sociedade adoecida, mesmo que meus olhos persistissem a amar. Pude notar, no entanto, o singular e notável fato de que eu continuava com os ossos estraçalhados. Até que, certo dia, quando distraído eu mancava pela rua, logo à entrada de um suntuoso hotel, fui interrompido:

— Repouse aqui, meu jovem, este é um lugar hospitaleiro para todos. Você precisa se recuperar. – e lançou-me um sorriso, carregado de um perfume que lembrou-me a vontade de fingir não mancar, como antes eu fazia. – O que você deseja, eu lhe posso dar.
— Deixe-me, eu lhe peço. Eu não quero nada.
— Isso é impossível. Todos querem algo; ou alguém. – ela insistia. – Diga-me o que deseja.
— Uma máscara. Dê-me outra máscara.

Autor: Lucas Vinícius da Rosa