O marido da madrugada

Ele simplesmente não conseguia dormir. Havia algo de perturbador na noite, o que lhe impedia de estabelecer o estado de sono. Sua cabeça latejava. Não apagava, conquanto seus membros estivessem deverás cansados. Muito lhe vinha à cabeça. Seus problemas diários; suas aflições crônicas. E, nesta convulsão notívaga, um peso muito grande parecia puxar suas pálpebras sempre para cima.

Pensou em sair à rua. Quem sabe acordar aqueles que tranquilamente adormeciam. Todavia desistiu. Isso não seria justo, nem mesmo com os injustos que toleram o remorso, para dormir profundamente. Dirigiu-se à sala, solitária como ele estava solitário. Ligou a televisão. Percorria uma programação tediosa com o controle, este apanhado na mesa, sobre a qual apoiou seus pés.

O ruído do aparelho o irritou. Apertou, então, o botão de mudo. Um silêncio percorreu seus ouvidos. E ficou ali, estático, a olhar ora para a ponta de seus dedos dos pés, ora para o desgraçado programa televisivo de atores mudos; imaginou-se como um personagem sem voz, pertencente a um roteiro, escrito pelo tagarela arquiteto da rotina.

Enquanto repudiava sua inquietação na quieta noite, pensou em seu casamento. Lembrou-se que, antes de firmado o laço matrimonial, dormia como um bebê noites sucessivas, ainda que fora do berço. Sua mulher repousava na cama. Discutiram, mais uma vez, horas antes. Contudo, não era somente essa discussão o fator determinante da sua falta de sono. Sentia que a transição das fases da vida, aliada à alteração de seus interesses individuais, perturbara muitos aspectos de sua relação consigo, e com outrem; mesmo o sexo com a sua esposa.

Lembrava-se, como se fosse ontem, das noites em que transavam incansavelmente. Naquele tempo, após peripécias sobre a cama, havia sono; demasiado tranquilo, por sinal. Contrastava-se isto a um amor agressivo, mas romântico, talvez utópico. Juravam-se amor perante a Deus e a si próprios. E como eram genuínas as lágrimas que faziam crescer seu amor fundado em fortes raízes! Tiveram três filhos.

À sua frente e imbuída em mudez, a televisão trouxe-lhe fortuita explicação. Percebia, com perspicácia, que seu marasmo era a semente que fazia florescer a insônia. Talvez ele próprio tivesse sido culpado. Ele era um programa de televisão em modo sem som. Sua voz gastara-se tanto na inércia das trocas de canal, que não sintonizava mais em frequência alguma.

Falava. Mas não se escutava. Quando refletiu mais profundamente, apercebera-se que, já há alguns anos, estacionava na vaga de deficientes na agência bancária; tinha tímpano estragado pelo eco do tempo, e isso lhe era prerrogativa. Acostumou-se ao conforto de uma aposentadoria, cujo benefício maior fora uma televisão de alta definição, com vários canais com os quais podia se distrair. Sua mulher, no entanto, permanecia em duas cores, em preto e branco.

Mais um pouco de noite se passou. Foi até a cozinha, esquecendo-se por um instante do grande aparelho televisor. Diante da geladeira, apanhou duas latas de cerveja, uma em cada mão. Abriu uma. Bebeu um gole tímido. Tomou fôlego. Fechou os olhos. Pensou em seus filhos. Dois deles haviam alcançado sucesso. Um deles transformara-se em ovelha negra. Padeceu pela ovelha mais escura, mas quis sorrir pelos outros dois. Sentiu dois terços de felicidade, e bebeu outro terço da lata, desejando esquecer o insucesso do caçula.

Ainda na cozinha, estourou o anel da outra lata. Mas não o fez sem antes jogar a lata antiga, já vazia, no lixo. Paralisou-se.

Do que se trata realmente a vida, pensou. Atingir o elogio profissional e pessoal? Talvez ter muito dinheiro, para que, além da televisão, pudesse exibir um carro do ano na festa de Natal da família. Engraçado. Ele tinha tudo isso. Porém, a insônia ainda lhe perturbava.

Voltou à sala, à televisão. Outro programa veiculava no canal estacionado: um leilão de joias, daquelas que ninguém compra, senão para noivas como o fora sua esposa um dia. Bebeu mais um pouco.

Em seguida, sentiu-se frágil, como o são os seres humanos que se relacionam. Notou que o casamento era instituição de difícil manutenção. A partir de duas diferenças, compor um consenso que contempla as particularidades era missão árdua. Ainda mais quando o que cada um quer muda tanto com o tempo. Aprendera isso, pela experiência. Não queria mais seu casamento, algo que parecia estar já acabado, como a lata de cerveja em sua mão.

De repente, uma figura surgiu ao pé da sala. Sua mulher. Ela carregava um telefone celular a mão. E disse.

— Você será avô. Desligue essa televisão, e vamos para o hospital. Seu filho mais novo irá ter uma ovelhinha negra, como o avô. – e sorriu docemente, desfazendo a feição de quem acabara de acordar.

Seu coração saltitou, em ritmo frenético e anormal. Esqueceu-se da esposa indesejada, do filho problemático, e da insônia que avassalava as noites. Ele seria avô, afinal. Sentiu uma ponta de explicação para sua existência. E apegou-se a isso. Chorou.

Anos depois, no decorrer destes mesmos anos, quando seu neto não lhe visitava, voltava a ligar a televisão, na madrugada. E a percorrer os canais. E a ir à cozinha, retornar à sala…no aguardo que, em alguma dessas vezes, o telefone voltasse a tocar.

Autor: Lucas Vinícius da Rosa