Existem contos, mas não fadas

Em 1881, Machado de Assis inaugurava o realismo, com seu Brás Cubas. Ainda que a hiprocisia humana, e seus equívocos, tenham sido inaugurados muito tempo antes. Estamos em 2012, e me recuso, neste momento, a escrever sobre outra coisa, senão acerca da realidade.

As paredes brancas do consultório transmitiam calma. Para quem as olhasse, até de canto de olho, uma tranquilidade invadia a respiração. No centro da sala, espaçosa e com dois metros de largura, erguia-se por quatro pés uma mesa de madeira beje, mas muito claro. Era uma dessas mesas que possuem gavetas com chave. Que escondem segredos e surpresas, propósito a que servem os pequenos cofres pessoais.

Atrás da mesa, pendurado à parede, havia um quadro de pintura amadora, mas impactante: a imagem de uma negra, uma ama de leite, com um busto para fora, alimentando uma criança branca, de traços europeus.

Duas cadeiras bem estofadas estavam à frente da mesa. Elas eram ocupadas por um jovem casal. Chamavam-se Ana e Sérgio.

A mulher, cujas mexas ruivas atingiam o meio das costas, comprimia seus dedos contra a coxa do namorado. O homem, moreno e volumoso, não forte, respondia serenamente; embora compartilhasse da aflição, fazia dóceis carícias na mão alheia agoniada.

— Não consigo imaginar como eram as coisas naquele tempo. – disse Ana, rebaixando um pouco seu olhar.

— Em que tempo?

— Quando os pais entregavam seus filhos aos cuidados de escravos. – e apontou para o quadro, atrás da mesa. – Que tipo de mãe sadia se recusa a amamentar seu próprio filho, delegando isso para outra pessoa?

— Não se preocupe, meu amor. Nós seremos ótimos pais. – balbuciou Sérgio, ao pé do ouvido de Ana. Depois, deu-lhe um beijo tenro em suas bochechas com sardas. A mulher avermelhou as maçãs do rosto, vislumbrada pela ideia da maternidade. E recompôs-se.

— Calma querido. Antes de especularmos sobre nossa qualidade como pais, temos que esperar o resultado do exame.

— Pois é. A doutora Adriana está demorando. Já faz quinze minutos que a secretária nos deixou entrar.

Antes que esperassem mais tempo, Adriana irrompeu pela porta. Trajava vestes inteiramente brancas, mais nítidas e claras que o branco das paredes. No pescoço, havia um estetoscópio pendurado, cujas extremidades alcançavam à altura do seu ventre. Suas unhas estavam cortadas, e sem esmalte. Não usava salto, mais uma confortável sapatilha esbranquiçada. Dos pés à cabeça, portanto, ela apresentava-se como tradicionalmente se fardam os médicos.

Sorridente, a médica precipitou-se pela porta. Correu até sua mesa. Afobada, sequer sentou na cadeira. Fitou o casal que estava a sua frente.

— Aninha, Sérgio. Peço desculpas pelo atraso.

— Imagina, – interpelou Sérgio, olhando para sua namorada. – sabemos que médico tem lá seus contratempos.

— Ai, queridos. Obrigada pela compreensão. Hoje tive uma emergência com um de meus pacientes. A criança engoliu o braço de uma boneca, acredita? – o casal arregalou os olhos. – Mas, enfim, vamos ao tão esperado resultado do exame de sangue HCG, não é mesmo Ana? – Ana levantou as sobrancelhas, apreensiva.

Adriana abriu sua bolsa. Apanhou um chaveiro. Chave por chave, tentou abrir a primeira das gavetas lacradas da mesa. Na terceira tentativa, constrangida, ela desabafou.

— A gente fica carregando esse monte de chaves, e nunca sabe qual é qual. – e sorriu. – Acho que é porque essas fechaduras são todas iguais.

O casal devolveu um sorriso amarelo. Fingiam o contrário, todavia estavam angustiados pelo atraso da médica. A isso se acumulava a delonga da abertura da gaveta. Se soubesse que a médica era tão atrapalhada, Ana teria passado ela mesma no laboratório e apanhado o exame.

Um minuto após, Adriana finalmente encontrara a chave certa. Abriu a gaveta. Puxou uma pilha de envelopes de variadas cores. Molhou o dedo indicador direito e pôs-se a folhear os papéis. Quatro dedadas depois, retirou da pilha um envelope grande, de tamanho médio.

— Muito bem, meus queridos. Vamos ver esse resultado… – rompeu o invólucro do envelope, e começou a acenar com a cabeça.

— E então doutora…? – perguntou Sérgio.

— Meus parabéns, Ana e Sérgio. Vocês vão ser pais!

Sérgio saltou da cadeira. Deu um pulo digno de condecorados atletas. Ana saltou também. Contudo, alcançou menor altura. Agora que estava grávida, era necessária a preservação da integridade da criança. Fosse ela um bebê, ou apenas um embrião. Logo Adriana se aproximou e ofereceu-lhes um abraço sincero. Propagou o calor honesto das raras e boas notícias, que merecem uma edição jornalística inteira só para si.

Com lágrimas nos olhos, emocionada, Ana dirigiu-se ao seu namorado.

— Eu estou orgulhosa de ter um filho seu Sérgio. Você é um ótimo homem, e será um ótimo pai. Eu te amo. E nós iremos amar essa linda criança que cresce aqui dentro. – e apanhou a mão de Sérgio, e fê-la tocar seu umbigo. Quebrando seu próprio paradigma de que homens não choram, os olhos de Sérgio sucumbiram à situação. As lágrimas escorreram até sua boca, alcançando suas palavras.

— Ana, case-se comigo.

Abraçaram-se profundamente, preenchendo seus respectivos oceanos com um belo amor. Comungaram a calmaria que permeia as tempestades. As tempestades enchem e transbordam os oceanos.

* * *

— Não dá mais, Sérgio. Você é um desgraçado, que se importa apenas com seu próprio umbigo. – disse Ana, enquanto discutiam na sala, seis anos após o encontro com a médica Adriana.

Ana e Sérgio estavam em casa. Um apartamento de classe média, situado em um bom bairro. Contudo, as paredes do imóvel acomodavam muito mal a acústica. E aquela felicidade, que antes cantarolava, fora substituída por ruídos que rompiam os tímpanos de sua filha, Marina.

Na sala onde vulgarmente cuspiam-se, um quadro pendurado próximo a janela aparentava desgaste. Embora a saliva das discussões houvesse estragado parte da pintura, algo nela ainda era nítido.

Em realidade, assim o era muito naquele apartamento: desgastado. Mesmo as cadeiras de estofado novíssimo já esboçavam furos. Talvez os móveis tivessem absorvido muito do impacto daquela casa, durante seis anos de palavras cruéis.

— Eu me importo apenas comigo?! – repeliu Sérgio.

— Sim!

— Passo o dia inteiro fora, trabalhando. Quando chego em casa, você vem logo com quatro pedras. E me atira uma a uma!

— Não grite! Sua filha está no quarto dormindo!

— Ah, olha quem fala. Você é quem começou a gritar, sua cadela!

— Por que não fala mais alto, seu brocha?!

— Pai? – uma vozinha muito doce ecoou do canto da sala, anexo ao início do corredor.

O casal paralisou-se. Apáticos, sentiram seus pulmões perderem o ar. Entreolharam-se, sem piscar. Suas pupilas haviam tornado-se ainda mais covardes, ao virem sua filha presenciar sua depredação mútua.

— Marina, volte para seu quarto. – Sérgio aconselhou. – Eu e sua mãe estamos conversando.

A pequena menina trajava um pijama, com diversas pintas de desenho animado espalhadas pelo tecido. Em seus bracinhos, abraçava um urso de pelúcia. Aquele urso havia sido seu companheiro nos últimos meses; foi quando as discussões entre Sérgio e Ana atingiram seu ápice.

Eis o cenário fatídico e lastimável: com cronograma marcado, soltavam fagulhas um contra o outro, causando incêndios no apartamento; pouco se importavam com a asfixia causada em sua filha pela fumaça.

— Tá tudo bem, mamãe?

Uma lágrima escorreu pelo rosto de Ana. Cálida e diferente das lágrimas comuns, a face da mulher foi corroída. Ela limpou o rosto, com as costas da mão.

— Sim, meu amor. Volte pra cama. – e a criança, com um olhar muito assustado em seu rostinho, afastou-se. Todavia, não antes sem apertar demasiado forte sua pelúcia. Não entendia porque seus pais brigavam. Sua compreensão era muito pouco crescida para entender a mediocridade adulta.

Marina desapareceu corredor adentro. Um barulho de porta fechando foi escutado. Porém, mais ingênuos que a ingenuidade infantil, não sabiam que Marina havia se escondido no canto de um dos quartos, que não o dela. E escutava atentamente ao assassinato por palavras proferido na sala.

— Seu vagabundo, não tá vendo o que tá falando nos ouvidos da sua filha? Ela tem que saber que desgraça de ser humano é o pai dela. Porque é isso o que você é!

— Ha! – e soltou um gargalhada. – Nossa filha é que não tem culpa da mãe que tem. Maldita hora em que fui me casar com você. Vivemos uma ilusão Ana. Uma ilusão! Se senti amor um dia por você, não sabia o que era amor!

— Se tem alguém iludido aqui, esse alguém é você! Vá se foder, porque o amor nesta acasa acabou há muito tempo! Você é um fantoche da sociedade. Seu sociopata!

— Como é?! – e agarrou nos braços da mulher, muito firmemente.

— Me larga. – e Sérgio largou. Marina apertava cada vez mais sua pelúcia, em seu esconderijo.

— Amanhã mesmo vou pegar minha filha e vou embora desta casa!

— Se você for, não leva a minha filha!

— A filha não é sua só sua! – uma veia saltou na testa de Sérgio; ela pulsava na mesma intensidade do seu tom de voz.

— Nem sua! – retrucou Ana.

Antes mesmo que a última exclamação fosse pronunciada, Ana apanhou um vaso de flor próximo a ela. Atirou-o na direção de Sérgio. Ele desviou. Um estardalhaço foi ouvido. O objeto atingiu a parede, bem no ponto onde a pintura prendia-se a parede. Não bastasse o estrondo do choque contra a parede, o quadro caiu no chão. Um terremoto erodiu no apartamento, alastrando-se até os ouvidos de Marina. Ela começou a chorar. No entanto, na sala, inquietados em sua contenda, os irresponsáveis adultos nada escutaram.

A retrucar o gesto hostil de sua esposa, Sérgio pegou o controle da televisão, no sofá. Mirou-o pessimamente no sentido de Ana. E, por sorte, errou seu lance. Uma gota do pranto mais injusto do mundo pingou dos olhos de Marina. Seu ursinho foi molhado pela gota.

Na sala, os dois prosseguiram. Não por muito tempo, contudo. Exasperados, encolerizados, exageradamente maus pais, um deles cedeu e bateu a porta. Sérgio saiu de casa, jurando nunca mais voltar, ainda que já tivesse feito isso outrora.

No chão da sala, estirado no chão, havia o quadro atingido pelo vaso jogado por Ana. Em sua pintura, agora mais definida, enxergava-se o desenho de uma negra e uma criança, com seus lábios no mamilo daquela. Era uma figura semelhante àquela do consultório da médica Adriana, onde receberam a notícia da concepção de Marina. Infelizmente, Ana e Sérgio estavam muito ocupados com sua própria flagelação. Do contrário, compreenderiam por que, séculos antes, amas de leite amamentavam as crianças de seus amos.

Autor: Lucas Vinícius da Rosa