Divã supostamente inspirado

Um toque tímido na porta sibilou pela sala do consultório. Fora muito tênue, porém. Passaram-se uns segundos. Ouviu-se outros três toques, estes mais decididos.

“Pode entrar”, disse uma voz rouca.

Assim que a porta se abriu, apareceu através dela uma figura inquieta, de gestos soltos. Escondia-se dentro de uma calça de couro preta, em cuja região da cintura exibia um grande cinto da mesma cor. Ainda de couro, uma jaqueta marrom cobria seu peito. Suas roupas despojadas eram sinônimos da sua desenvoltura desinibida; seus cabelos embaralhados, e sua barba por fazer, oportunamente, reforçavam esse semblante.

Distanciando-se da porta, perambulou um pouco pela sala, sem dizer nada. Até que surgiu uma voz, irrompendo o silêncio.

“Olá, meu nome é Breuer. Naturalmente sei quem você é, mas gostaria que se apresentasse, de qualquer forma.”, disse o analista, assentado em uma poltrona no canto do lugar.

“Sou Jim.”, respondeu Morrison, alheio.

“Meu filho mais velho é um assíduo fã das suas músicas…”

“Obrigado.”

“Por que você não se senta, para conversarmos?”, e apontou para uma confortável maca de estofado escarlate, posta em frente a poltrona em que se alojava.

Jim olhou para Breuer, depois encarou a maca.

“Você acredita que me sentirei mais confortável se me sentar nesse divã, onde o sangue escorrido das consciências pintou ele de vermelho?”, balbuciou. “Acho que não.”

Próximo ao divã, no seu lado direito, achava-se uma poltrona, semelhante à do analista. Era menos amedrontadora que a maca, uma vez que, pelo menos, não sustentava pigmentação exótica e avermelhada.

“Você pode se sentar nesta poltrona.”, indicou Breuer, com o braço esticado, em linha reta. “Ou então ficar em pé, se assim desejar.”

Transpirando apreensão pelos poros, Morrison descansou na poltrona. Logo após, descansou seus pulmões, através de um suspiro longo. Ele parecia desconfortável.

“Muito bem, Jim. Peço que se sinta à vontade durante nossa conversa.”, dizia o analista. “Afinal de contas, é disso que se trata esta sessão, uma conversa franca e honesta entre nós. Ok?”

Morrison apenas acenou com a cabeça, em sinal positivo, poupando suas palavras para assuntos mais substanciais. Ademais, Breuer, com as pernas cruzadas e as mãos sobre elas, interrogou seu mais novo paciente.

“Jim, por que você está aqui?”

“Por quê? Porque disseram que sou louco. Não me importo com a opinião pública, afinal ela é muitas vezes uma voz conservadora vomitada pelo povo. Mas, pensando bem, talvez eu seja louco de fato.”

“O que lhe faz pensar que é louco?”

“Sou inquieto e divago em todas as direções. Meu pensamento me maltrata, mas não mais que meus sentimentos. Amo muito as pessoas enquanto as odeio. Sou muito sensível às coisas banais, mas que me permitem escalar alturas. Acho que criei uma ilusão em estar sempre subindo, como uma pedra lançada para o cume da mais alta montanha. Mas tudo que é lançado para o alto, retorna para a terra. Sou uma poesia enlouquecida, que sobe e desce.”

“Mas você”, interpelou Breuer, “não é louco porque ama, ou porque odeia. Você também não é louco se pensa sobre seu pensar. Pensamos até dormindo, quando nosso inconsciente assume as rédeas do nosso sistema cognitivo. Explicando melhor, as neuroses, ou loucuras, resultam dos processos inconscientes, e desaparecem diante da consciência.” e fez uma pequena pausa. Em seguida, prosseguiu, “O que mais te incomoda?”

“Você tem algo para beber?”, Jim perguntou, inquieto, remexendo-se na poltrona.

“Tenho chá, café e água. Se quiser, peço para minha secretária trazer.”

“Não! Me refiro a algo com mais nutrientes? Um whiskey…ou um conhaque, quem sabe, na ausência da minha primeira sugestão”, e soltou um riso.

“Não permito o consumo de bebidas alcoólicas durante as sessões.”

“Hum. Acredito que fui inteligente em antecipar essa proibição.”, gabou-se. Então, puxou um pequeno cantil de metal de dentro da jaqueta. “Sempre carrego comigo meu bom e velho cowboy.”

Porém, antes que retirasse a tampa do recipiente, Breuer levantou-se, ofendido. Morrison, normalmente assassino dos autoritarismos e de suas formas derivadas de potência, entretanto, guardou o cantil. O analista sentou-se. E convalesceu.

“Sinta-se à vontade para fumar, no entanto. Para isso farei uma exceção.”

Morrison apanhou uma carteira, também da jaqueta, e retirou um cigarro. Acendeu-o, e pôs-se a falar.

“Sou louco porque encaro a morte diariamente. Ela é a minha linha no horizonte, que a cada dia se distancia, mas que precisa existir, para que eu possa continuar caminhando. Sou livre para a morte e livre na morte. As pessoas sentem medo desse sentimento que mata minha covardia. Mas eu sinto medo é dos medrosos, e da sua insegurança em relação a fatalidade da vida. Inclusive, penso que alguns deles querem me matar. Tive essa sensação em alguns shows que fizemos.”

“Você se sente perseguido, Jim?”

“Se eu disser que sim, serei louco.”, deu outra tragada no cigarro. “Mas se disser que não, também assim o serei, afinal sou perseguido por mim mesmo, todos os dias.”

Breuer intrigou-se. Tirou as mãos da sua projeção comum, sobre os joelhos, e, com uma delas, roçou seu queixo. Ficou ali, concentrado por alguns instantes. Depois despertou.

“Qual o objetivo dessa sua perseguição própria?”

“Novas formas de percepção. Um início. Um fim.”

“Hum. Com que frequência essas perseguições ocorrem?”

“A cada fração de segundo.”, convicto, afirmou Morrison, dirigindo seus olhos diretamente aos de Breuer. “Você já amou verdadeiramente, Breuer?”

“Tenho esposa e filhos. Digo que amo os dois com a mais pura verdade.”

“Sobre isso, digo que aqueles que lidam, a cada dia, com o nascimento e com a morte conseguem ser pequenos e grandes, anões de gigantesco sentimento. A abertura das portas da percepção traz novos inícios e fins. Essa abertura permite que enxerguemos dois eternos caminhos, que conjugam passado e futuro num instante, no agora. E eu amo o agora. O amor é a resposta.”

Breuer, ainda mais questionado pelo que Morrison falava, novamente roçou o queixo. Estagnou-se, aprofundado em sua poltrona.

“As pessoas não costumam me entender.”, continuou Morrison, “Você também não precisa. Talvez em séculos não me compreendam. No entanto, que me absorvam. Somos influências dos nossos antepassados que sepultaram em nós suas culturas. Uma leitura e escrita constante do mundo.”

“Jim, você não acha que está se isolando muito nesse seu universo, que é tão incompreensível aos outros?”, questionou-lhe Breuer.

“Sempre fui solitário. Mas, não completamente isolado. Do contrário, não haveria uma Pamela a tocar meu íntimo sempre que soa sua voz. Ela é a minha poesia, uma aproximação comigo mesmo. Sim, por ela eu sou louco. Se estou isolado, portanto, estou só, porém com ela.”

“Você fala com muito encanto em relação a ela. Em nossa próxima sessão poderemos conversar mais a respeito de Pamela, se quiser.”, e o analista olhou no relógio, como se estivesse cansado daquela sessão mais que das outras. “Nosso horário terminou, Jim. É um prazer conhecê-lo. Pegue leve por aí.”, aconselhou, sorrindo ternamente.

“Ninguém aqui sai vivo, Breuer”, Morrison exibiu os dentes, com gengivas de sarcasmo.

“Até a próxima, Jim”

Cumprimentaram-se. Mal sabia Breuer que Jim Morrison jamais voltaria àquela sala, ou à qualquer outro consultório que não fosse seu túmulo, seu berço.

Autor: Lucas Vinícius da Rosa