As palavras, as coisas e um shopping center

As palavras e as coisas

Estático, em posição bípede, Michel reconstruía as letras do aviso da porta que dava acesso ao shopping: “Ar condicionado. Mantenha a porta fechada”. Para este mundo moderno, decididamente, o aviso era redundante. Porém, não era esse pleonasmo que o paralisava. Hesitava, no entanto, porque procurava outra possibilidade de entrar no complexo comercial. Cansara-se de adentrar sempre pelas mesmas portas.

Parado ao lado da fachada principal, havia um segurança, de braços cruzados. Michel, exalando ar investigativo, aproximou-se do homem.

— Olá. Gostaria de saber se somente é possível entrar no shopping por esta porta principal e pelas laterias. Quero dizer, não existe uma quarta porta pela qual eu possa entrar, existe? – disse Michel.

O segurança, sisudo, encarou aquele homem caucasiano. Desconfiou. O que lhe fora perguntado não conservava muita lógica. Entretanto, sem atitude adicional, incólume e de peito estufado, simplesmente respondeu.

— Não!

Mesmo diante daquela ríspida negativa, Michel não se incomodou. Desviou sua atenção do membro da equipe de segurança. Por certo não tentaria explicar àquele pobre funcionário sua intenção. Uma nova entrada significava uma nova visão, um novo ângulo, sobre como o shopping poderia ser acessado.

Penetrou pela porta principal.

O relógio tilintou indicando dezessete horas. Momento do chá da tarde para os britânicos. Mesmo de origem francesa, Michel concordava com o hábito inglês. Dessa forma, dirigiu-se ao terceiro andar.

No piso número três, situava-se a vasta praça de alimentação. Vastidão de espaço, de cadeiras e sofás para se acomodar, de opções culinárias e de diversidade cultural. Lugar frutífero para suas análises. Avistou uma cadeira vazia, no canto extremo direito da praça, e foi até ela. Sentou-se.

Enquanto percorria com seus olhos as possibilidades de comida, Michel teve seu pensamento chacoalhado. À nordeste de sua vista, conseguia-se registrar todas as etapas de produção de um restaurante fast-food. A confecção do lanche obedecia a uma ordem bem estabelecida. Trajando vestimentas equivalentes, os funcionários corriam de um lado para o outro. Correria ordenada. Todavia, Michel notou que aquela configuração em ordem, na verdade, era fruto antes de um embaralhamento. Assim como na natureza, sob certo ponto de vista, os funcionários do restaurante bagunçavam-se para, somente depois, assumirem uma ordem. Jeito contemporâneo de assemelhar e copiar a natureza, ele pensou.

Eis que a fome interrompeu o raciocínio de Michel. Faminto, aplicou pouco critério ao que comeria. Encaminhou-se, em passos médios, rumo ao restaurante cuja dinâmica observara. Atendido em tempo cronometrado, pouco depois estava com uma bandeja na mão. Pedido entregue, iniciou novamente passos médios em direção ao ponto em que se encontrava, no lado extremo direito da praça. Contudo, na metade do caminho, algo o inquietou. Por que motivo ele voltaria ao mesmo lugar, assumindo a mesma visão do mesmo ângulo? Diante dessa inquietude, refez sua rota. Sentou-se em um sofá central.

Enquanto saboreava sua refeição, concentrado em forrar seu estômago, Michel teve sua consciência abruptamente cutucada. Quem lhe despertava o interesse, dessa vez, era um um grupo de jovens inter cambistas. Alojados em um sofá próximo a ele, conversavam entre si. Travavam conversas paralelas, ora falando em inglês, ora em línguas ilegíveis ou distantes. Michel franziu a testa. Costumava fazer isso quando pensava.

Dado momento, um dos jovens apontou um objeto para um outro colega e falou algo irreconhecível. Diante da incompreensão do colega, o locutor reformulou sua palavras, dessa vez em inglês. Assim sendo, o jovem que não havia entendido, então, finalmente compreendeu.

Intrigado quanto aquele problema de comunicação, Michel matutou. Os jovens, visivelmente de diferentes lugares do mundo, falavam línguas distintas. Para que houvesse entendimento mútuo, fora necessário recorrer a uma língua comum entre eles. Um sistema mais geral de signos. Embora algumas línguas tenham sua escrita de forma variada (da esquerda para direita, vice-versa, de cima para baixo, etc), ou possuam símbolos e fonéticas diferenciadas, o objeto designado pela linguagem, qualquer que seja ela, mantém seu significado. A linguagem, dessa forma, para Michel, parecia ser apenas uma maneira de resgatar o significado por sob um signo, um objeto, uma leitura de algo.

Pouco tempo depois, o grupo de inter cambistas se retirou. O lanche de Michel estava pela metade.

Ainda não satisfeito com sua posição ocupada na praça, e ávido por novas observações, Michel decidiu, como de praxe nos últimos minutos, mudar de lugar. Olhou ao redor. Encarou cada esquina da praça de alimentação. Sentara, antes, numa cadeira. Ocupava, atualmente, um sofá. Tentava, mas não conseguia estabelecer um novo lugar no qual se instalar. De repente, um estalo.

— “Por que não termino minha refeição em pé? É algo que nunca experimentei, especialmente em um shopping center. Talvez assim, em pé, seja possível entender porque abandonamos a leitura do mundo, renegando à semelhança das relações, para, cegamente, assumirmos uma representação ordenada de nós mesmos. Em pé, de um ponto mais alto, olhando para essas pessoas mecanizadas, acredito poder explicar essa representação como pura apresentação.” – pensou.

Sessenta segundos após tomada a decisão, Michel estava posto em pé, no meio da praça de alimentação. Enquanto capturava, sob um ângulo mais alto, as cenas ao seu redor, mordia seu sanduíche, arrancando-lhe pequenos pedaços. Vez o outra, mexia sua cabeça em sentido de confirmação; exercitava seu pensamento. Dali, do patamar dos seus olhos, o mundo parecia revelar outra perspectiva.

Mais sessenta segundos se passaram. Um segurança, fardado como aquele que guardava a porta principal do shopping, encurtou distância em relação a Michel. E, sem pedir licença, dirigiu-se a ele.

— O senhor não pode fazer isso. – advertiu.

— Isso o quê? – respondeu Michel, após quebrar seu regime de pensamento.

— O senhor não pode comer em pé. São regras do estabelecimento.

— Por que motivo eu não poderia comer na posição em que bem entendo?

— Como disse, e vou falar só mais uma vez, o senhor não pode comer em pé!

— Pois se eu não posso comer em pé, como sentado.

Assim que a última palavra saiu de sua boca, Michel agachou-se e sentou no piso. Como a retaliar o ato mesquinho do segurança, conduzia, pedacinho a pedacinho, o lanche fast-foot à sua boca. Sorriu. Julgava ter vencido aquela ridícula batalha. Mal juízo, entretanto.

— Venha cá, seu metido a palhaço! – ordenou o segurança, puxando febrilmente Michel pelos braços. – Você está detido por desobedecer às regras do shopping, e também por desacato à equipe de segurança.

Michel gargalhou. Pouco preocupava-se com a represália. Sabia que a sua detenção fora, na verdade, em virtude de tentar pensar diferente, mudar sua ótica. Tentar entrar no shopping por outra porta, sentar-se em uma cadeira, à direita, em um sofá, ao centro, ou, finalmente, em pé, eram atitudes que pareciam pertencer a um louco. Mas Michel não era louco. Somente desejava entender o mundo. Para isso, se necessário, fixaria seus pés sobre o núcleo da Terra e, com seus braços, tentaria alcançar a mais distante das galáxias. Sua alternância de hábitos, por fim e em definitivo, buscava entender as palavras e as coisas.

Autor: Lucas Vinícius da Rosa